Diário do Alentejo

A porta do tempo
Opinião

A porta do tempo

Vítor Encarnação, professor

10 de dezembro 2020 - 11:00

Ao contrário do que seria lógico, viver a olhar para a frente é muito mais difícil do que viver a olhar para trás. Embora quase tudo no nosso mecanismo físico nos proponha ir para diante, os olhos, as pernas e o esqueleto todo estejam direcionados para ver e caminhar em frente, para assim conseguirmos acompanhar naturalmente o tempo, o horizonte e o devir, o pensamento e a memória teimam no regresso. O pensamento e a memória têm vida própria e o corpo pouco ou nada faz deles, até o coração se lhes junta a caminho do que passou, ao encontro do que já morreu, ao princípio do que já não existe. O pior de tudo é quando ao pensamento, à memória e ao coração se junta a saudade.

 

Quando dentro das mulheres e dentro dos homens incompletos, que são quase todas e quase todos, se reúnem estes quatro arautos da nostalgia, os olhos cessam de ver, as pernas param e o esqueleto todo torna-se uma coisa invertebrada. O presente, o único tempo que realmente existe, esse gerúndio acanhado, tristonho, melancólico, é uma porta que se abre para o passado, uma porta que teima em abrir-se para o sítio de onde viemos, raramente é uma porta aberta para o sítio para onde deveríamos ir. Caminhamos para trás, olhamos para o que acabou, vamos à procura do que perdemos. Lá atrás, na escuridão do tempo, o pensamento, a memória, o coração e a saudade, desorientados, já não sabem como hão de voltar. 

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