Diário do Alentejo

As Comunidades Intermunicipais em tempo de eleição para as CCDR
Opinião

As Comunidades Intermunicipais em tempo de eleição para as CCDR

António Covas, professor universitário

29 de outubro 2020 - 15:00

Volto ao tema das Comunidades Intermunicipais (CIM), num momento crucial para as políticas de coesão territorial, agora que se preparam dois grandes programas para a próxima década, o programa de resiliência e recuperação económica (PRRE) e o quadro financeiro plurianual (QFP). A minha pergunta de partida é, aparentemente, simples: agora que se inicia mais um período de programação e utilização de fundos europeus qual é a configuração que queremos dar às atuais comunidades intermunicipais (CIM), um simples secretariado executivo, uma genuína comunidade intermunicipal ou uma autarquia do 2º grau? Façamos, então, uma breve revisitação pelo tema.

 

O atual enquadramento normativo As CIM foram instituídas pela lei nº75/2013 de 23 de setembro que estabelece o regime jurídico das autarquias locais. As entidades intermunicipais CIM estão consagradas no Título III onde se estabelecem as atribuições das CIM (artigo 81º). O regime jurídico da transferência de competências do Estado para as entidades intermunicipais é atualizado pela lei nº50/2018 de 16 de agosto onde se estabelece, designadamente no artigo 30º do capítulo III o elenco das novas competências intermunicipais e, muito em especial, aquelas que se referem à gestão de projetos financiados por fundos europeus e à gestão de programas de captação de investimento.

 

Nestes dois domínios em particular, o DL nº 102/2018 de 29 de novembro estabelece a forma concreta de transferência de competências para as CIM. Pela sua amplitude e alcance o exercício desta competência será fundamental para a década que se avizinha. Neste DL pode ler-se: “As entidades intermunicipais passarão a ter competência para, designadamente, elaborar, em articulação com as opções de desenvolvimento a nível regional, a estratégia global das respetivas sub-regiões, elaborar o programa de ação para a prossecução dessa estratégia e definir, implementar e monitorizar programas de captação de investimento, de dimensão sub-regional, articulado com a referida estratégia, bem como gerir e implementar projetos financiados com fundos europeus. Salienta-se, igualmente, o papel mais ativo que é atribuído às entidades intermunicipais na dinamização e promoção, a nível nacional e internacional, do potencial económico das respetivas sub-regiões, bem como no acesso a programas de financiamento europeu, tendo em vista a implementação de projetos a nível sub-regional.” Por isso, eu pergunto, qual é a forma mais inteligente de lidar com esta competência das CIM?

 

 

O enquadramento político das CIM para a próxima década

Vejamos, agora, a questão pela sua perspetiva política. A minha primeira constatação é a forte bipolarização político-partidária entre centralistas e localistas. Esta bipolarização não deixa muita margem de manobra para o grupo dos regionalistas e menos ainda para os subregionalistas e intermunicipalistas.

 

A minha segunda constatação é que a Lei nº75/2013 e depois a Lei nº50/2018 foram, na prática, um duro golpe para os regionalistas portugueses, tornando-os, praticamente, dissidentes dos dois primeiros grupos. Digamos, de forma benigna, que a regionalização administrativa foi substituída pelo “diálogo regional” entre a administração central e a administração local, realizado por interpostas entidades, a saber, as CIM e as CCDR. E, assim, o poder político permanece lá onde sempre esteve, nos municípios e na capital. Ou seja, tudo como dantes, não obstante essa “sofisticação” político-partidária que é a eleição indireta do presidente da CCDR.

 

A minha terceira constatação é a de que não haverá muitas condições para grandes aventuras político-administrativas, sejam regiões administrativas ou autarquias de 2º grau nas CIM, mas, talvez, uma margem de progresso apreciável para “soluções colaborativas inovadoras” que, nesta altura, nem sequer imaginamos e que cabem na grande transformação digital que está em curso. Ou seja, apesar de ser uma abordagem conservadora do problema, o “diálogo regional” entre as CIM e as CCDR pode ser, assim, a grande novidade da próxima década se, para tanto, existirem estruturas de missão permanentes e competentes que tornem eficaz e efetivo esse diálogo, aquilo que eu aqui designo como a região-cidade e o ator-rede de uma CIM.

 

CIM, em busca de mais inteligência coletiva territorial

As minhas dúvidas, porém, residem nas qualidades de um “diálogo regional” entre duas estruturas burocráticas, um secretariado executivo e uma comissão de coordenação. Com efeito, elas são certamente competentes para promover o investimento público sub-regional e intermunicipal, mas não têm muita vocação para promover o investimento privado e as novas soluções associadas aos ambientes inteligentes e a transformação digital. Quer dizer, precisamos de ir em busca de mais inteligência coletiva territorial.

 

Se fizermos uma interpretação e aplicação compreensivas das atribuições constantes do artigo 30º da Lei nº 50/2018 e das competências concretas do DL nº102/2018 podemos imaginar, por exemplo, uma comunidade intermunicipal (CIM) capaz de congregar e animar as redes de investigação e desenvolvimento, as redes de cooperação empresarial, as redes de inovação social, as redes amigas do ambiente, as redes das artes e cultura e, num país tão pequeno como o nosso, usar o potencial colaborativo que essas redes podem estabelecer entre si e com as comunidades vizinhas.

 

Penso, por exemplo, nas quatro CIM do Alentejo – a CIM do Alto Alentejo, com 120 mil habitantes e 15 municípios, a CIM do Alentejo Central com 170 mil habitantes e 14 municípios, a CIM do Baixo Alentejo com 127 mil habitantes e 13 municípios, a CIM do Alentejo Litoral com 95 mil habitantes e 5 municípios – e imagino que cada uma delas pode ser uma “região-cidade” dotada de uma plataforma colaborativa de ‘smart region’ e de um ‘hub’ tecnológico para ‘start up’ e ações coletivas inovadoras e todas elas interagindo por via de uma meta-plataforma regional de coordenação E porquê?

 

Porque sem inteligência coletiva territorial uma CIM nunca será uma genuína comunidade de autogoverno será, antes, um fruto da necessidade e/ou do acaso. Sem inteligência coletiva territorial, emocional e racional, uma CIM dificilmente será um território politicamente relevante, uma região-cidade e um ator-rede capazes de ações coletivas inovadoras.

 

Sabemos como as cidades inteligentes estão na ordem do dia. Atualmente, prevalece a versão tecnológica e gestionária de ‘smart city’ que inclui a infraestruturação digital, as redes integradas de energia, a gestão de bairros inteligentes, a mobilidade urbana, a administração em linha, as plataformas urbanas e a sua interoperabilidade, a recolha e tratamento de dados e, finalmente, a segurança dos cidadãos. Nesta abordagem mais tecnológica a inteligência urbana incide, em geral, sobre três blocos de medidas: a virtualização de serviços convencionais numa ótica vertical de serviço-utente, a criação de plataformas digitais ‘made in’ numa perspetiva mais horizontal e colaborativa e, por fim, uma lógica mais uberizada feita de sistemas SIG/GPS e inúmeros aplicativos.

 

Ora, na “região-cidade” das CIM do Alentejo fica claro que vai uma longa distância entre a simples provisão inteligente de serviços públicos de uma ‘smart city’ e a criação de uma plataforma de conhecimento integrada numa estratégia de desenvolvimento territorial mais compreensiva e dilatada no tempo, como deve ser próprio de uma região-cidade de baixa densidade. O planeamento territorial da região-cidade não só considera a arquitetura biofísica dos sistemas naturais e seminaturais e as infraestruturas ecológicas indispensáveis à sustentabilidade do espaço como vai buscar inspiração na “teoria dos bens comuns” onde é decisivo o contributo das redes de conhecimento e o papel do ator-rede na convergência dessas redes. Estou a falar das redes de ciência e investigação, de cooperação empresarial, de inovação social, das redes amigas do ambiente e das redes de artes e cultura, que se podem constituir em plataformas colaborativas muito eficazes no planeamento e desenvolvimento de territórios inteligentes e criativos.

 

Notas Finais

As CIM e as regiões-cidades do futuro, pela sua natureza reticular, circular e colaborativa, estarão obrigadas, em primeira mão, a reduzir os custos de contexto e a gerar os benefícios de contexto necessários para um saudável desenvolvimento de todas as suas parcelas de território. Estou a falar de sinais distintivos e recursos como amenidades e zonas de recreio e lazer, estações e campos arqueológicos, ‘terroirs’ em zonas de produção DOP/IGP, bosquetes multifuncionais e parques naturais e geoparques, zonas de intervenção agroflorestal, áreas de cooperação agrícola, áreas com endemismos florísticos e faunísticos, áreas de paisagem com valor histórico-literário, entre muitos outros motivos que podem ser mobilizados para efeitos de aproveitamento agroambiental e visitação turística.

 

No modo convencional de organizar o território os cidadãos iam ter com os serviços que estavam fisicamente estabelecidos nos locais de residência de acordo com uma certa geografia urbana. No modo digital, e em muitos casos, são os serviços que vêm ter connosco, em linha e no terminal do nosso ‘smartphone’. A transição digital vai revolucionar a dimensão espaço-tempo e a mobilidade do território da região-cidade do futuro. Por isso, a região-cidade da CIM precisará de um ator-rede que saiba ler os sinais do seu tempo: as diversas modalidades de agricultura de precisão, o planeamento urbanístico da ‘smart city’, as plataformas e os serviços públicos em linha, a mobilidade autónoma, o ensino e trabalho à distância, a internet dos objetos, os interfaces de realidade aumentada e virtual, as redes sociais, a vigilância eletrónica, etc.. Se não ficarmos “confinados digitalmente”, tudo se encaminha para uma nova dimensão espaço-tempo, com mais campo na cidade e mais cidade no campo. Com menos distância e mais tempo livre (intermitente), teremos, finalmente, um horizonte mais largo e promissor à nossa frente.

 

Termino como comecei. As minhas dúvidas, residem nas qualidades de um “diálogo regional” entre duas estruturas político-burocráticas, um secretariado executivo com vocação intermunicipal e uma comissão de coordenação com vocação regional cujo presidente vai ser eleito já esta semana por um colégio eleitoral restrito composto por eleitos municipais. Os dois eleitos indiretos – o presidente da CIM e o presidente da CCDR — são certamente competentes para promover o investimento público sub-regional e intermunicipal, mas não têm muita autoridade política para mobilizar o investimento privado empresarial e as novas soluções associadas aos ambientes inteligentes e a transformação digital. Quer dizer, precisamos de mais inteligência política antes de ir em busca de mais inteligência coletiva territorial.

 

Artigo originalmente publicado no “Observador”

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