Fiz de quase tudo na vida. Caixeiro no Alentejo e no Algarve, futebolista em Setúbal. Na capital cirandei como rececionista de hotel, segurança, tradutor, revisor, livreiro, e muitos mais eteceteras. Quando aportei à capital, anos 50, a cidade fervilhava de movimentos, culturais e políticos. Do contra, claro. Movimentos a que aderi de imediato, ou não fosse (seja) eu filho do nosso eternamente magoado Alentejo.
Mas não me limitei à beleza serena da escrita, poesia ou prosa. Envolvi-me numa esquerda que se queria lúcida e atuante. Nunca quis escrever na linguagem dos deuses, nem na escrita do absoluto. Sou alentejano, pobre, rural, pacóvio às vezes, logo só posso falar no rés-do-chão da escrita.
Era um caminhar, muitas vezes sem guia, em busca de uma terra prometida, tendo como bússola primeira o humanismo e a fraternidade. Sei que não existe um desenvolvimento repentino (a não ser pelas armas) da história, inevitável e obrigatório. Esse desenvolvimento, todos o sabemos, terá que ser feito pelo Homem, até chegar ao seu mais alto estado, para convocar os descrentes.
Porque os políticos de carreira, com as exceções (raras) que todos conhecemos, nossos ou de outras bandeiras, fazem-me sempre lembrar aquele americano que, ao ser apontado como culpado pela guerra no Vietname, retorquiu que nunca tinha assassinado nenhum vietnamita, porque se tinha limitado a vender as balas ao exército americano.
Este artigo (ou crónica?) começa a parecer-se com as sessões de cinema desses anos 50: Primeiro o documentário da guerra e só depois o filme anunciado. E o que é este filme?
O trabalho do ganha-pão, a que nunca fugi, e o trabalho do parto político, na Cooperativa dos Trabalhadores de Portugal, ali às Escadinhas do Duque, com gente como hoje já não se fabrica: - Maria Lamas, Igrejas Caeiro, Manuel Mendes, Maria Rosa Colaço, Matilde Rosa Araújo, José Manuel Tengarrinha, Afonso Cautela e tantos, tantos outros. O Cesariny, às vezes, e o Manuel de Seabra.
Semana sim, semana não a Pide aparecia e levava dois dos nossos.
A mim calharam-me 10 dias em Caxias, o que é quase uma vergonha se compararmos, por exemplo, com o meu grande amigo João Honrado, que aguentou 17 anos atrás de várias grades.
Nós, os intelectuais, poisávamos no primeiro andar. O rés-do-chão era habitado por condutores da Carris, tipógrafos, litógrafos e ofícios correlativos, que sabiam, mas sabiam mesmo muito mais que nós, os do andar de cima.
E por fim (o tal filme principal) a minha Casa do Alentejo. Meu oásis, minha ternura, minha mesa do amor.
A Casa onde, ainda sonhadores, discutíamos o comércio da fé, o preço da liberdade, a poesia de Ana Akhnuak, o intimismo de Mayakovsky, a ternura de Neruda e o sangue doce da poesia de Carlos Queiroz. E o Manuel da Fonseca, claro, e o Redol, o Egipto Gonçalves, o Lorca, a Florbela, o Papiniano, o Antunes, o Serra, entre tantos outros. A Casa do Alentejo, hoje como sempre, tem sido o meu colo doce, claro e luminoso. No complexo jogo dos afetos, a nossa casa do nosso Alentejo tem sido sempre a límpida eira onde se debulha a saudade da nossa terra natal.
Nesse meu tempo de entrega e luta convivi com o Paquete, que tanto dizia poesia como carregava os caixotes da casa, com o Mário Pereira, ator do D. Maria e que praticamente “morava” na Casa do Alentejo e me levava às cegas para a “outra banda”, para eu dizer os meus versos, e desaparecia não sei para onde, deixando-me sozinho às duas, três da madrugada, no meio do nada. O Mário bebia muito, como eu na altura, e morreu cedo. Os nossos amigos morrem sempre cedo.
E o “maluco” do Manuel Geraldo, que queria matar toda a gente e não matava ninguém, claro.
Era um bom prosador e um ótimo jornalista. E o Vultos Sequeira, bom moço que não vejo há séculos, com seus primeiros versos, simples e depurados. E o José Carlos Gonzalez, o galego mais português de Portugal e poeta cinco estrelas, que se foi suicidar em Paris, sabemos lá porquê. Também o Samuel, o Fernando Fitas, o Manuel Xarepe (enciclopédia de cultura), os pintores Mourato e Kira; eu sei que toneladas de gente boa.
Nesta vida viver não é nada de novo, como também não é nada de novo morrer. Mas a Casa do Alentejo foi sempre a minha casa dos afetos, a morada onde o silêncio canta e onde viver é mesmo um naco grande da felicidade.
O mais perto que tenho da minha infância, da minha terra, da minha gente, do meu país alentejano, é a Casa Alentejana de Lisboa. E linda continua: os azulejos sorriem, carinhosos, os bares convidam à tertúlia, os restaurantes continuam a cheirar a borrego e a cação. E em horas inesperadas podeis ouvir uma dama de apelido Calado falar pelos cotovelos, o que é um mistério para mim.
- Pelos cotovelos e pelo coração
- Eu sei, cara amiga, eu sei.