Diário do Alentejo

Estátuas
Opinião

Estátuas

Luís Godinho, jornalista

01 de julho 2020 - 17:00

Talvez não se recordem de Kadhim Sharif al-Jabouri. Para o lembrarmos é preciso recuar à infame cimeira das Lages. Tarde de 16 de março de 2003. Estão a ver? Um sorridente Durão Barroso, à época primeiro-ministro português, recebia na ilha Terceira os senhores da guerra: George W. Bush, presidente dos Estados Unidos, acompanhado por Tony Blair e José Maria Aznar, primeiros-ministros de Inglaterra e de Espanha, respetivamente. Gente respeitável. Todos eles juraram ter visto provas da existência de armas de destruição massiva no Iraque, o que representava uma óbvia ameaça para o mundo "civilizado" pois que o "outro" pouco lhes interessava. As armas, soube-se depois, não existiam. Mas passados quatro dias começava a segunda Guerra do Golfo, desencadeada por uma coligação militar internacional liderada pelos suspeitos do costume. Foi coisa rápida e emotiva, transmitida em direto pela televisão.

 

Em pouco menos de um mês as tropas americanas chegaram a Bagdade, Saddam Hussein conseguiu escapar - seria capturado oito meses depois e enforcado em novembro de 2006 - mas a sua estátua na praça Firdos faria a abertura dos telejornais de todo o mundo, ao ser derrubada por um grupo de iraquianos enraivecidos. Entre eles, de marreta na mão, lá estava Kadhim Sharif al-Jabouri, um pobre mecânico que testemunhou o assassinato de vários membros da sua família às mãos do regime liderado por um dos mais sanguinários ditadores do mundo. Lá estava ele, nesse abril de 2003, a ajudar a apagar a memória de Saddam. A estátua caiu. E o mundo, tanto o "civilizado" como o "outro", emocionou-se com o momento.

 

Derrubar estátuas não é coisa nova. Não fosse esse gesto civilizador e a vida seria um inferno para qualquer alemão decente que fosse obrigado, dia após dia, a esbarrar no bigode de Adolf Hitler esculpido num qualquer pedaço de pedra. Ao contrário dos livros, que podemos ler ou não ler, ou dos filmes, que decidimos ver ou não ver, as estátuas são (muitas vezes) peças de arte pública destinadas a glorificar gente cujos feitos, se feitos lhes podemos chamar, não resistem à passagem dos tempos. Representações do que "muitas vezes não chegou a ser arte antes de ser instrumento ou património", como bem resumiu Mariana Mata Passos.

 

Em altura de revoluções, há estátuas derrubadas à bomba ou à marretada. Quando vivemos em democracia, aconselha a prudência, o bom senso e o respeito pelos outros que se faça como sugerido pelo Conde de Abranhos: "Há de sair com benzina, porque é uma nódoa". Tendo o tema saltado para as primeiras páginas dos jornais - seja porque a estátua de um comerciante de escravos foi atirada ao rio, em Bristol, ou porque a do padre António Vieira, em Lisboa, acabou vandalizada - seria útil que o debate não se entrincheirasse em posições dogmáticas. Não para derrubar estátuas. Mas para escolher as que melhor nos representam no espaço público. Até porque, 13 anos depois de andar às marretadas no centro de Bagdade, já o pobre do Kadhim Sharif al-Jabouri dizia que, se calhar, tinha sido má ideia: "O Saddam matava pessoas mas não tanto como este governo".

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