Diário do Alentejo

Parvejando
Opinião

Parvejando

Jorge Feio, arqueólogo

03 de junho 2020 - 14:00

Aqui há uns tempos, logo no início do período correspondente ao estado de emergência, prometi a mim próprio (e ao diretor do "Diário do Alentejo”), um texto com este título. Felizmente, o muito trabalho que tive com o inventário do espólio de uma escavação arqueológica que dirigi em Mértola (e que será a base de uma futura crónica neste jornal, prometo, quer pelo que esteve na base da sua realização, quer pelas descobertas realizadas), adiou o intento.

 

O título "parvejando", à boa maneira do gerúndio falado no nosso muito querido Alentejo, surgiu de uma conversa que tive com um amigo meu, professor em Mértola, quando esperávamos pela nossa vez na fila de um supermercado desta bonita vila alentejana. Dizia-me ele: "Já viste que assim, a modos que de repente, começou a chover em Mértola?" Retorqui eu: "Sim! Aqui em jeito de brincadeira, parecia que a Câmara de Mértola não tinha pago a conta a Deus Nosso Senhor! Aqui há uns tempos, no regresso de Elvas para Mértola, choveu o caminho inteiro até que cheguei à Ribeira de Terges e Cobres (a ponte situa-se na fronteira dos concelhos de Beja e de Mértola) e a estrada estava seca. Ou seja, passei a fronteira e acabou-se a água".

 

Rimos um bocado, mas esta "conversa aparvatada" fez-nos pensar um pouco e começámos a falar mais a sério. E se este vírus, além de estar a matar aos milhares, nos estivesse a mostrar o quanto estamos a fazer mal ao planeta em que vivemos? Afinal de contas, os peixes e os cisnes voltaram a Veneza, na costa algarvia começaram a aparecer grandes cardumes de peixe junto à praia, em Loures surgiram cervos nas ruas e em Alcochete um touro quis "ir às compras" ao Freeport. E situações idênticas foram vistas um pouco por esse mundo fora. Até as serpentes no Algarve estão a aparecer em maior número, bem como os javalis nas estradas. Então, se calhar, a conversa não tinha sido assim tão parva...

 

Por tudo isto, dei comigo a pensar: "Calhando (à boa maneira alentejana), em vez de ter medo da crise profunda provocada por este vírus, deveríamos antes pensar que vamos dar dez passos para trás, para depois podermos dar 20 em frente. E porque é que não aproveitamos para mudar um bocadinho a coisa?" Passo a explicar: se a evolução económica neoliberal, desmesurada e sem travões, tem vindo a matar rapidamente tudo o que nos envolve e se cai de uma forma tão abrupta por causa da ação de um vírus terrível, por que motivo (ou motivos) não mudamos a estratégia? Porque é que não pensamos numa economia que respeite mais a natureza? Ou numa economia mais social?

 

Parece-me que ficou aqui perfeitamente demonstrado que a economia feita pelos nossos avós não era assim tão mal pensada. Nós investimos tudo o que temos, "à bruta", para ganharmos o máximo. Eles deixavam algum de lado, mesmo que pouco, para qualquer eventualidade. Será que nós aprendemos mesmo a lição? Será que vamos passar a investir mais na investigação científica feita no nosso País, para podermos reagir ainda mais rapidamente, ou até evitar situações como esta? Será que vamos investir mais na nossa economia, em vez de ir comprar os produtos onde são mais baratos? Será que os nossos empresários irão deixar de "deslocalizar" as suas fábricas para países como a China, ou a Tailândia? Será que vamos apostar mais na qualidade dos nossos produtos?

 

A (nossa) reação parece-me muito boa e deixa-me esperançoso (como se diz por Alvito)! Conseguimos o principal: evitar a falência do Serviço Nacional de Saúde e empurrar para mais tarde um maior número de contágios, para uma fase mais próxima do aparecimento de uma vacina, ou do aparecimento de um medicamento eficaz. Mas conseguimos mais. Observe o senhor leitor a forma como rapidamente a nossa indústria soube adaptar-se para produzir máscaras e ventiladores. Numa primeira fase fomos essencialmente compradores (sobretudo à China), mas numa segunda fase começámos a abastecer o nosso mercado a preços acessíveis e já se perspetiva uma viragem para a exportação. E este é o exemplo do que, em minha opinião, devemos fazer: colocar a nossa indústria a avançar de imediato por campos em que os "países mais desenvolvidos" ainda não podem avançar. Desta forma, poderemos ganhar tempo e espaço. Ou seja, quando os outros puderem recomeçar a investir "nós" já lá estamos e poderemos tomar a dianteira.

 

Por outro lado, será mesmo necessário que as empresas concentrem os seus escritórios em Lisboa? Com esta "coisa" do teletrabalho e da internet, ficou perfeitamente demonstrado que é possível trabalhar a partir de casa. Ora, se é possível trabalhar a partir de casa, porque não promover a "deslocalização" de alguns escritórios para o interior do País? Não seria mais benéfico para Portugal, o governo investir nas infraestruturas que o nosso Baixo Alentejo precisa, permitindo encurtar distâncias e tempo e fazendo com que uma boa parte das empresas pudesse instalar-se por aqui. Poderia permitir um aumento demográfico e para as próprias famílias seria muito benéfico - só o tempo que perdem em levar (ou buscar) os filhos à escola...

 

Também no setor do turismo este é o melhor momento para pensarmos em melhorar as coisas aqui pelo Baixo Alentejo. Talvez, lá estou eu parvejando outra vez, fosse tempo de repensarmos a forma como estamos a preservar o nosso património, como por exemplo Pisões, e também a forma como o podemos utilizar (de forma positiva) na criação de roteiros, ou de percursos, municipais, ou intermunicipais. Não podemos pensar num turismo de massas, mas sim num turismo de qualidade cuja rentabilidade possa inclusivamente ser benéfica para os projetos de conservação e restauro desse mesmo património.

 

Penso que se deve pensar no exemplo de Mértola e estendê-lo ao resto do território, assumindo Beja, finalmente, a sua capitalidade. Penso em monumentos como São Cucufate, a ponte romana sobre a ribeira de Odivelas, a barragem romana da Senhora da Represa, as várias ermidas espalhadas pelo campo, muitas em ruínas. Penso também na divulgação do Cante e de todo o património etnográfico que está em belíssimos museus, que não têm as merecidas visitas. Penso ainda no Fórum Romano de Beja, ou nas igrejas da cidade, belas mas muito pouco divulgadas.

 

De resto, faço votos para que, nós alentejanos, continuemos a dar o exemplo ao mundo e ao Portugal dito "desenvolvido". Que continuemos com poucos casos de covid-19 e que não tenhamos mais mortes a lamentar. Eu por aqui irei continuar parvejando... no próximo fim de semana lá para as margens do Guadiana, à sombra das muralhas de Mértola, com o afastamento social dos restantes pescadores, é claro!

Comentários