Diário do Alentejo

“Se não existisse o SNS, não imagino como estaríamos”

17 de abril 2020 - 15:00

Ana Matos Pires, diretora do Serviço de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (Ulsba), coordenadora da Saúde Mental da Administração Regional de Saúde do Alentejo e assessora do Programa Nacional para a Saúde Mental, fala do impacto da covid-19 na saúde mental dos portugueses, considerando expectável que “a mudança abrupta do nosso estilo de vida” traga um aumento de perturbações mentais. Entre muitas outras considerações, a psiquiatra refere que a situação prova “a absoluta necessidade” de um Serviço Nacional de Saúde robusto, no “contexto da resposta de saúde no País”. Expressa a importância de as famílias reforçarem os contactos entre si, da maneira possível, no dia-a-dia bem como nesta quadra de Páscoa atípica e apela, simultaneamente, para que se fique em casa. 

 

Texto José Serrano

 

O Programa Nacional de Saúde Mental deu orientações aos coordenadores regionais para ativarem o plano de saúde mental, de apoio psiquiátrico em situações de emergência, no contexto da pandemia de covid-19. O que representa, em termos práticos, a ativação deste despacho?

Esta ativação significa que os serviços locais de saúde mental e os serviços e cuidados primários estão obrigados a dar uma resposta aos pedidos de ajuda em saúde mental. Qualquer pessoa que necessite deve contactar, por telefone, o centro de saúde, onde há psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais e médicos com formação em primeiros cuidados psicológicos. Se estes técnicos, que integram o núcleo de resposta dos cuidados de saúde primários, considerarem que não foi possível resolver determinada situação encaminham o utente para os serviços locais de saúde mental, onde será atendido por um psiquiatra. Este tomará conta do caso, acompanhando-o através de consulta telefónica, prescrevendo medicação se assim o considerar necessário ou, se entender que a situação é grave, encaminhando-o para a urgência. 

De que forma a mudança que se operou no quotidiano das nossas vidas, pelo isolamento social, pelo confinamento domiciliário, pela impossibilidade de estarmos com muitos dos nossos entes mais próximos, afetou a saúde mental da população portuguesa?

Não temos ainda dados numéricos sobre esse impacto. Mas podemos antecipar, porque é óbvio, que esta mudança abrupta do nosso estilo de vida nos vai obrigar a uma readaptação que, tal como todas as readaptações muito agudas, irão desestruturar alguns de nós, em particular quem tenha doença psiquiátrica prévia, mas também toda a comunidade que se vê de um momento para o outro privada do seu funcionamento habitual. Imagine-se por exemplo o efeito que o confinamento domiciliário poderá ter em famílias disfuncionais: o nível de conflito irá certamente aumentar e despoletar alterações comportamentais, é previsível que assim seja. 

 

Neste cenário, que tipo de patologias teme que mais se possam manifestar?

É expectável que esta situação traga um aumento das perturbações mentais. Numa primeira fase o risco acrescido de patologia ansiosa e de reações depressivas e, eventualmente, problemas relacionados com síndromes de abstinência de consumo de substâncias. A médio prazo, e para além do resultado imediato do isolamento, estamos muito preocupados com os efeitos que esta situação poderá ter na saúde mental da população, resultante do desemprego, das falências, de toda essa desorganização social que poderá vir a existir. 

 

Que tipo de orientações poderá dar no sentido da minimização do isolamento a que estamos confinados?

O isolamento físico não é sinónimo de isolamento social, tal como declarou a Organização Mundial de Saúde logo no início desta pandemia. É importante, pois, mantermos a comunicação, seja através de telemóvel, de redes socias ou de vídeo “qualquer coisa”. Uma outra orientação, muito, muito importante, vai no sentido de que as pessoas devem tentar conservar ao máximo as suas rotinas, mantendo o horário usual de acordar, de tomar banho, das refeições, de trabalho para quem está em teletrabalho. E vestirem-se normalmente, não se ficar em pijama. Basicamente será tentar mimetizar tudo o que fazemos habitualmente, apesar de ficarmos em casa. Muito importante também é dar atenção acrescida aos idosos, muitos deles a viverem sozinhos, telefonando-lhes ou contactando-os através de vídeos chamadas, várias vezes por dia.

 

Há muito que vem alertando para a precaridade de recursos humanos em termos de saúde mental, no Alentejo. Como tem sido neste contexto de insuficiência de profissionais lidar com esta inesperada e preocupante situação?

Os recursos humanos, nesta área, são de uma escassez atroz em todo o Alentejo. De qualquer maneira quero descansar a população de toda esta região e dizer que todos os serviços locais de saúde mental e todos os centros de saúde se articularam para darmos a resposta possível, aumentando as nossas horas de trabalho, estando contactáveis o dia todo. Está a ser feito um esforço enorme mas a resposta está no terreno.

 

Como espera que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) aguente este impacto previsível de maior solicitação de cuidados de saúde mental?

Considero que as estruturas governamentais, nomeadamente o Ministério da Saúde e a Direcção-Geral da Saúde, têm estado a responder a esta situação da maneira que é expectável, como podem e como devem, nestas circunstâncias. Mas questiono-me, preocupada como técnica de saúde e como cidadã, como é que o SNS ficará depois de tudo isto, o que irá dele restar após este esforço perfeitamente impensável. Espero que nos consigamos reerguer.

 

Considera que esta difícil situação que estamos a viver veio reforçar a necessidade de Portugal ter um SNS robusto, no qual é fundamental investir?

Sem dúvida nenhuma. Ao olharmos para os Estados Unidos da América é possível perceber que seria uma catástrofe ainda maior se não tivéssemos um estado social a funcionar em Portugal. Dentro do estado social englobo as estruturas que dizem respeito ao trabalho e à segurança social mas sobretudo as que dizem respeito à saúde. Se não existisse o SNS, não imagino como estaríamos, neste momento. Isto só vem provar a absoluta necessidade do SNS, no contexto da resposta de saúde no País.

 

Estamos numa Páscoa completamente invulgar em que não é possível a reunião familiar, por razões de prevenção da covid-19. Teme que perante esta impossibilidade as perturbações, no âmbito da saúde mental, possam aumentar?

Admito que seja um fator de risco para uma eventual descompensação psiquiátrica e creio, sem qualquer sustentação científica, que será tão mais importante quanto mais crente e religiosa a pessoa seja. Para colmatar esta impossibilidade de reunião familiar é importante o contacto, pelo telefone, pela Internet, entre os vários elementos familiares, comemorando a Páscoa, quem habitualmente o faz, e estando em família da forma possível. E cozinhem aquilo que é habitual nesta altura.

 

Quais as orientações que daria, em síntese, para mantermos em boa forma a nossa sanidade mental, nesta provação que vivemos?

Há que manter as rotinas, ter cuidado com a alimentação, cumprir os horários de sono. Que todos os doentes crónicos – com doenças do foro psiquiátrico, com diabetes, com hipertensão arterial, com doenças reumáticas e outras –, mantenham, por favor, toda a medicação, contactem os médicos por telefone e não parem as terapêuticas que fazem regularmente. Não existe tratamento para este vírus mas os números menos maus dos últimos dias mostram um abrandamento na curva de infetados, uma demonstração de que o confinamento estará a dar resultado. Fiquem em casa.

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