Vítor Encarnação, 60 anos, natural de Aldeia de Palheiros, Ourique
Morou em Ourique e Castro Verde e concluiu o ensino secundário em Almada. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Vive em Ourique, onde é professor de inglês e alemão. É cronista de jornais, escreve para diversas publicações e publicou livros de poesia, crónicas, contos e literatura infantil.
Dezassete sílabas de cal é o nome do mais recente livro de Vítor Encarnação, obra composta por centena e meia de poemas baseados no haiku, forma poética clássica do Japão.
Indicia a alvura do título a sua relação filosófica, visceral, com esta terra alentejana?
Sim, a cal é uma das matrizes desta terra. Há um imaginário coletivo de pureza, de renovação, de beleza, de brio e de vaidade em torno do branco das paredes. A cal era o rosto e a alma das casas e das pessoas que as habitavam. Cresci em casas caiadas, sou feito dessa claridade entranhada nas paredes. A cal é como a infância, já a perdi, mas ela estará em mim para sempre.
Que importância tem para si a poesia, na sua meditação sobre a vida?
A poesia é a procura das palavras certas para conseguir explicar a vida. Na poesia pouco se pode desaproveitar, a poesia não quer espaços mortos ou palavras inúteis, tudo nela tem de ter significado, tudo nela tem de preencher o poeta e o leitor.
Deambulando entre vários estilos é-lhe sempre fácil entender que género de sílabas literárias carece cada momento?
Com a idade consegui desenvolver uma espécie de medidor de palavras e respetivos significados para cada estilo que quero desenvolver. Associado a isso uso um truque: quando não sei que caminho devo seguir, quando me faltam ideias, quando as palavras teimam em não dizer o que eu quero, socorro-me da poesia, vou à procura de palavras tresmalhadas e mais insubmissas e arranjo soluções. Na conceção deste livro, baseado na estrutura dos haikus japoneses, estive, em cada um dos 150 poemas, sempre limitado por dezassete sílabas gramaticais. O desafio foi o de encontrar dentro da riqueza da nossa língua as palavras que eu queria e dar-lhes vida em três pequenas frases com cinco, sete e novamente cinco sílabas. Neste processo de encaixe, muitos poemas morreram por falta ou por excesso de sílabas.
Num mundo em convulsão crescente, assemelha-se hoje a poesia a um contraponto, ao colocar de uma flor no cano de uma espingarda?
No tempo vertiginoso em que vivemos a poesia é condenada à quase indiferença. Os cuidadores do género são poucos e os consumidores escasseiam. Mas a poesia é uma semente que recupera sempre mesmo na terra mais inóspita, aliás, é aí que ela se dá melhor, é aí que ela ganha força para fazer frente à boçalidade e ao ódio. A boçalidade e o ódio que por aí grassam não conseguem entender a poesia porque a poesia vai sempre para além da superfície, da espuma dos dias e, principalmente, da desumanidade.
O que gostaria que os seus poemas oferecessem a quem os encontrar?
Que fossem uma porta de sílabas que o leitor abre para entrar na memória e na identidade alentejana.
Deste seu livro, um poema…
Cal, princípio/ virgem, viva luz branca/ /acesa no sul
José Serrano