Diário do Alentejo

“É no afeto que permanece a palavra maior”

31 de agosto 2024 - 08:00
À Sombra da Angústia, de Jorge Serafim
Foto| DRFoto| DR

Jorge Serafim, 53 anos, natural de Beja

 

Contador de histórias, humorista e promotor do livro e da leitura, percorre o país divulgando contos de tradição oral em contextos escolares, bibliotecas, festivais de teatro, feiras do livro. Como narrador já atuou na Argentina, Uruguai, Cabo Verde, Espanha, Macau, Suíça e Luxemburgo. Como humorista conta com centenas de espetáculos apresentados em televisão, auditórios, empresas, centros culturais e festivais. É autor de diversos livros de poesia, romance, infantojuvenis. É membro do coletivo musical grupo Tais Quais.

 

Texto | José Serrano

Neste seu mais recente livro, um “entrançar de histórias coletivas caminhadas individualmente”, a palavra “família” revela-se como a inequívoca centralidade do pensamento literário.

 

De que nos fala, preponderantemente, este seu livro? De uma casa de família que se esvazia com o passar do tempo. As memórias assentam praça nos lugares mais recônditos do corpo. Um casal partilhando a vida em conjunto há cerca de 70 anos, para combater a ausência que os transtorna, multiplica as recordações na janela da marquise onde passam muitas horas sentados enfrentando o vazio que os assola.

 

Percorre, anualmente, o país inteiro, levando os seus variados espetáculos de Sul a Norte. Considera que a “angústia” de que fala no seu livro é semelhante em todas as regiões?Penso que a angústia abordada nesta narrativa é transversal no País e existe em qualquer canto do mundo. É o caminho natural da vida e todos têm de o fazer e viver. O rumo que cada um segue é um percurso feito sonho, sentimento, desilusão e paixão. Ver partir é contrabalançar o desenrolar da existência com as angústias do coração mãe e do coração pai. Ansiedade versus orgulho. Crescimento versus amadurecimento.

 

Que acontecimento, visão ou ideia espoletou a necessidade de escrever esta obra?Somos cinco irmãos. Cada um seguiu o seu caminho. A casa de família esvaziou. Uma vez ouvi a minha mãe dizer: “Agora tudo nos sobra, quartos, talheres, roupa de cama. Até já vejo a corda do estendal”; algumas memórias pessoais que escutava aos meus pais, a exemplo dos bailes na sociedade recreativa abrilhantados pela Orquestra Ligeira Pax-julia ou dos mastros populares que se faziam na rua da Condessa – a cidade de Beja está sempre presente na minha escrita, como forma de resgatar uma memória riquíssima; a lenda de Beja sobre o touro e a cobra.

 

Considera que a fruição da arte e da cultura deveria ser em Portugal mais “receitada”, no combate aos “apertos de angústia”? Sem dúvida. Sem cultura morre-se de bestialidade. Assim está o mundo, onde a mercantilização de tudo e mais alguma coisa é o lema das pessoas, das entidades e das nações. Fruir de arte e cultura é repensar o nosso lugar e o nosso papel. Questionar, transgredir, contemplar, repensar, são verbos que nos ensinam que existem outros caminhos, outras histórias a serem ouvidas, além daquelas que nos impingem.

 

Ainda que ausente do título, “família” é a palavra-chave deste pensamento literário? Absolutamente, a palavra “família” é o motor deste livro. Neste entrançar de histórias coletivas caminhadas individualmente é no afeto que permanece a palavra maior. Envelhecemos para dar sentido ao estendal despido de roupa, à porta da rua que pouco abre, às palavras que ficaram por dizer e aos abraços que ficaram por abraçar. Depois é sempre nos regressos que a solidão esmorece e o amanhã não tem medo de existir.

Comentários