Diário do Alentejo

Vistoria da câmara encerra Beja Hostel

03 de agosto 2024 - 08:00
Proprietário do edifício promove ação de despejo. Acervo arqueológico com futuro incerto
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A pedido do proprietário do edifício onde está instalado o Beja Hostel, a comissão de vistoria da Câmara Municipal de Beja, depois de uma visita ao local, emitiu um parecer que obriga o estabelecimento a cessar a atividade – “de momento” –, uma vez que “o prédio não tem condições de utilização/habitabilidade, pelo que deve ser anulado no portal ePortugal o registo de alojamento local”. Recorde-se que o espaço tem sido, desde há cerca de quatro anos, objeto de trabalhos de prospeção arqueológica que puseram à vista um acervo importante de vestígios da ocupação romana da cidade.

 

Texto | Aníbal Fernandes

 

O auto da vistoria realizada no passado dia 16 de julho, pela divisão de administração urbanística da Câmara Municipal de Beja, e a que o “Diário do Alentejo” teve acesso, considera que a “existência de fissuras em algumas paredes e abóbodas (…)”, e tendo em conta as escavações arqueológicas realizadas no Beja Hostel, na rua Alexandre Herculano, “poderão estar a pôr em risco a estabilidade do edifício”.

O documento recomenda que o assunto seja, “quanto antes, analisado pelo arqueólogo que acompanha a escavação [André Boto] e por um engenheiro perito em estabilidade”. No entanto, a vistoria detetou condições para o “risco de incêndio”, o que levou a decidir pela cessação da atividade hoteleira. Quanto à intervenção arqueológica no local, “não existindo qualquer procedimento de licenciamento”, deve “parar de imediato”, mas, segundo o arrendatário, os trabalhos estão “suspensos há cerca de um ano”.

O auto refere ainda que qualquer intervenção naquela área da cidade obriga a “procedimento de licença que, dadas as obras em execução, deveriam ter sido salvaguardadas com aprovação de um projeto de arquitetura”.

A intervenção dos serviços camarários foi realizada a pedido do proprietário, já depois de este ter avançado com uma ação de despejo do arrendatário por, entre outras razões, incumprimento no pagamento da renda acordada, desde dezembro de 2021, e que “anda próximo dos 75 mil euros”.Fernando Guerreiro Grilo admite que no início “ainda houve alguma tolerância” da sua parte para o atraso e chegou a autorizar as intervenções, mas com base “em requisitos que depois não foram cumpridos, nomeadamente, a inexistência de projetos”.

 

Baratas Não fosse o aparecimento de uma praga de baratas e ainda hoje o hostel estaria a funcionar. António Freire, sócio da empresa arrendatária do espaço, conta que durante a pandemia de covid-19 “o hostel encontrava-se encerrado pela força das circunstâncias”, tendo aproveitado para “realizar uma intervenção para eliminar a praga de baratas que existia no piso térreo” e que obrigava a sucessivas desinfestações sem qualquer resultado visível. Eram realizadas aproximadamente cinco desinfestações por ano e as baratas persistiam em aparecer.

Não foi preciso escavar muito para encontrarem “uma cisterna com três metros de fundo e aproximadamente quatro metros quadrados de área, perfeitamente funcional”. De seguida ficou à vista a “primeira talha enterrada e uma fossa sética, em funcionamento ainda, devido a uma rutura grave das canalizações de esgotos antigas que se encontravam partidas e a vazar para dentro dessa fossa sética. Foi aí, nessa fossa, que se criou o habitat favorável para a procriação de milhares de baratas e outras pragas”.

De imediato, diz o arrendatário, contactaram “a Direção Regional de Cultura e contrataram uma empresa de arqueologia” que desde sempre tem acompanhado os trabalhos e realizado “os respetivos levantamentos e registos”.

Em junho de 2022 foi assinado um protocolo com o município de Beja. No preâmbulo do documento lê-se que “tudo indica tratar-se de uma parte de um complexo de termas romanas (…)”, havendo ainda “outros vestígios catalogados entre o século I a.C. e a atualidade”.

Acrescentava-se que “os trabalhos continuam com o acompanhamento de técnicos nas diversas áreas” e com a obra devidamente declarada à [então] Direção Regional da Cultura.

O objetivo era a criação de um museu físico e digital e a Câmara Municipal de Beja comprometia-se ao “levantamento de inertes” resultantes da obra; à emissão de uma “licença de ocupação do espaço público e isenção da respetiva taxa”; a “decidir, no mais curto espaço de tempo, o alargamento da escavação à via pública, nomeadamente, ao espaço da esplanada”; e à “cedência de materiais” para expor os artefactos recolhidos. O protocolo tinha a duração de um ano, renovado automaticamente por igual período, se não fosse denunciado por nenhuma das partes.

Paulo Arsénio confirmou ao “Diário do Alentejo” os termos do protocolo acima descritos e destacou que “nunca esteve previsto qualquer apoio ao nível científico, técnico ou financeiro”. Quanto ao apoio financeiro, o presidente da Câmara Municipal de Beja diz que tal “só seria possível através de uma candidatura” a fundos para esse efeito, o que nunca veio a ser solicitado. No que respeita ao conflito entre proprietário e arrendatários, o autarca diz que só agora foi “confrontado” com essa situação e que na fase inicial “o proprietário nunca contactou a Câmara Municipal de Beja”.

Já os vereadores da oposição, Vítor Picado (CDU) e Nuno Palma Ferro (coligação PSD/CDS/PPM/ /IL/A), que também visitaram o local, mostram uma atitude mais voluntariosa para a resolução do problema.

Para o primeiro, a “importância arqueológica” dos achados deveria ter levado a Câmara Municipal de Beja “a atuar junto das entidades responsáveis de forma a agilizar o processo” e a conseguir um “acordo com o proprietário e o arrendatário de forma a garantir o usufruto de todos”.

Já para Nuno Palma Ferro, “estes achados deviam inserir-se numa estratégia global para divulgar a cidade, algo que a autarquia não tem”. O vereador da coligação liderada pelo PSD diz que, segundo os especialistas, trata-se de um acervo “completamente incrível”, que permite retratar a cidade no tempo da Pax Julia.

Para o arrendatário a solução poderia passar pela “aquisição do edifício por parte do município de Beja e o apoio efetivo à conclusão do projeto e preservação deste valioso património, evitando assim o seu enterramento e não aproveitamento para a economia local”. Posteriormente, o espaço seria “concessionado com o compromisso de explorar a unidade hoteleira e o espaço museu”.António Freire estima já ter investido cerca de 150 mil euros nas escavações realizadas no local. “Dava para comprar uma casa”, conclui.

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