Diário do Alentejo

As memórias da ditadura e da revolução

17 de fevereiro 2024 - 12:00
Florival Baiôa Monteiro, o refugiado político em Bruxelas
Foto | José Ferrolho/ArquivoFoto | José Ferrolho/Arquivo

Florival Baiôa Monteiro faleceu na passada terça-feira, dia 13, aos 73 anos, vítima de doença prolongada. Figura ímpar da região e, principalmente, da cidade de Beja, foi pela sua atividade de professor de história que marcou toda uma geração de alunos. Mas também pelo seu ativismo, pela sua inquietação cívica e pelo seu amor a Beja, fosse na criação da Associação para a Defesa do Património Cultural da Região de Beja, na dinamização do movimento Beja Merece + ou, simplesmente, na paixão que tinha pela história da sua “Pax Julia”, Florival Baiôa Monteiro é uma figura incontornável da região, devendo o seu inconformismo ser exemplo. Em jeito de homenagem, o “Diário do Alentejo” republica o último grande testemunho que deu a este jornal, a propósito dos 49 anos do 25 de Abril de 1974, publicado originalmente no ano passado.

 

Texto | José Serrano

 

“A ideia de abalar de Portugal começou a germinar em mim pouco tempo depois de chegar a Lisboa”, recorda Florival Baiôa. A ida para a capital, com 17 anos, em 1968, tinha como objetivo a continuidade dos seus estudos em contabilidade, iniciados na Escola Industrial e Comercial de Beja, que permitiam, após ali concluídos, o ingresso direto no Instituto Comercial de Lisboa – “Para depois tirar a licenciatura em Economia, pensava eu”. Contudo, os planos iniciais estavam longe de um dia, por razões “obviamente políticas”, poderem vir a singrar. “Assim que cheguei ao instituto meti-me de imediato na associação de estudantes e comecei a participar em atividades contra o regime”. Ações que passavam pela participação e organização de manifestações estudantis e pela distribuição de panfletos antiguerra colonial – “Distribuíamo-los pelos liceus, nas universidades e, durante a noite, colocávamo-los nas caixas de correio… eu, geralmente, ficava com a zona que vai do Cais do Sodré até Alcântara, o corpo sempre num sobressalto”, recorda.

“Nunca reprovei, que quem reprovava era logo chamado para ir combater, mas passámos, eu e um grupo de colegas, a ser referenciados e seguidos pelos tipos da PIDE – dois deles começaram a aparecer de quando em vez, em aulas nossas, para nos intimidar…”. Uma dupla da polícia política que Florival Baiôa acabou por ter no seu encalço após uma manifestação, organizada por várias associações estudantis, numa feira do livro inaugurada pelo então Presidente da República, Américo Tomás: “Eu já tinha fugido várias vezes daqueles cabrões da PIDE (tive três mandatos de captura, soube depois) – as pernas sempre a tremer como gelatina, mas nunca me apanharam que eu era um atleta, se não o fosse tinha ficado ‘feito num oito’ –, mas dessa vez foi diferente”. Diferente porque logo no início da fuga se apercebeu que uma suposta “amiga, extremamente ‘revolucionária’”, que pertencia ao seu grupo de estudantes insubmissos, era de facto uma delatora infiltrada do regime – “Quando ela tentou travar a minha corrida apercebi-me de tudo e ainda lhe gritei ‘tu és destes gajos’… a partir daí começámos a receber, amiúde, a visita da PIDE à casa onde eu vivia, uma espécie de comuna de estudantes”. O que aconteceu a seguir, já Florival Baiôa previa – a expulsão do Instituto Comercial de Lisboa, juntamente com mais quatro colegas, e a chamada para a tropa, no Regimento de Artilharia n.º 5.

“Entrei no quartel de Vendas Novas com 21 anos e logo na recruta tentei, estupidamente, safar-me daquilo com a simulação de uma doença. Bicos de papagaio, imagine-se… sabia lá eu o que era isso, mas foi o fingimento que um médico que me queria ajudar me disse para tentar. Acabei por reprovar na recruta, por faltas dadas pelas contínuas idas à enfermaria e a consultas médicas. Não foram na conversa e o que os bicos de papagaio me trouxeram foi, desta vez no Regimento de Infantaria n.º 6, em Penafiel, uma segunda recruta. Assim que a concluí fiquei a saber que ia ser mobilizado para o norte de Angola, uma das zonas mais perigosas da guerra”.

Perante esta indicação, Florival Baiôa decidiu desertar, beneficiando de uma permissão para ir a Beja para se despedir da família, dias antes de embarcar. “Era para mim evidente que quem, como eu, lutava contra a guerra colonial não podia pegar numa espingarda para matar aqueles que eram os libertadores das antigas colónias portuguesas”. Assim, aproveitou a curta estadia, na sua cidade, para fazer os contactos necessários para “dar o salto” e para comprar vestuário adequado para fugir para a Dinamarca ou para a Bélgica, “onde tinha pessoas amigas, fugitivas também”, que o acolheriam. “A minha mãe admirava-se de eu estar a comprar roupa quente – ora se ia para Angola, onde fazia tanto calor –, mas grande parte da minha família sabia que eu ia desertar”.

Para além dos imprescindíveis contactos e da roupa para outras meteorologias, havia que tratar de arranjar um passaporte. Falso, uma vez que o verdadeiro documento tinha sido entregue, meses antes, a um colega de tropa que pretendia, também ele, desertar. “Emprestei-lhe o meu passaporte e ele passou a fronteira com o meu nome, apenas lhe colou uma fotografia sua, retirando a minha”.

Mas a fuga acabou por ser trágica, morrendo o colega num acidente de automóvel, na Suíça. O desastre fatal acabou por ser noticiado no jornal “Diário Popular”, que informava da morte de um português em terras helvéticas, de seu nome “Florival Baiôa Monteiro”, o nome que constava no documento encontrado na posse do infortunado desertor.

“Na Tabacaria 77 (a mais movimentada de Beja, situada nas Portas de Mértola, hoje fechada), comentou-se logo o meu ‘falecimento’ e houve quem tivesse feito luto por mim”. O novo passaporte, necessário para a viagem, foi-lhe atribuído em Beja, “completamente limpinho, em branco”, por um grupo na clandestinidade, opositor do regime ditatorial. “Depois fui eu que tive de fazer tudo para o preencher, com a ajuda de uma máquina de escrever e ‘inventando’, a cortar meticulosamente letrinhas de borracha com um xi-sato, o falso carimbo branco que me ‘permitia’ a saída de Portugal, pela Direção-Geral de Segurança, que entretanto tinha substituído a PIDE. Ainda que o tivesse feito com todo o rigor, enganei-me numa palavra, que em vez de um ‘S’ apresentava qualquer coisa mais parecida com um ‘2’”.

Organizado o imprescindível, a viagem para o exílio iniciou-se por ocasião da passagem de ano, de 1971 para 1972, altura em que um amigo de Florival Baiôa o levou de automóvel de Beja à fronteira, em Elvas. “No Caia fui levado por um contrabandista de café até Badajoz, onde tinha à espera a minha namorada, a Rita, e um amigo meu que também desertou, o André. Ambos tinham conseguido chegar a Espanha uns dias antes de mim”. De comboio, a viagem até Bruxelas – “decidimo-nos pela capital belga por falarmos bem o francês” – decorreu sem incidentes de maior, “ainda que o estranho ‘S’ tenha levantado sérias dúvidas ao revisor do comboio que nos levou, numa primeira etapa, até Madrid”.

Na capital belga, onde lhe foi atribuído, pela Organização das Nações Unidas (ONU), o estatuto de refugiado político, Florival Baiôa arranjou emprego como eletricista na fábrica Pont Rolants, situada na avenue de la Couronne – “Preparava parte do sistema elétrico utilizado em guindastes”. Da fábrica, acabado o trabalho, seguia quase invariavelmente para o café Pantoufle. “Era esse o nosso centro nevrálgico, onde se encontravam os refugiados políticos e os desertores portugueses. Era lá que recebíamos e partilhávamos contínuas informações acerca de Portugal e da guerra – sabíamos que iam surgindo algumas modificações, que o conflito tinha passado da luta armada também para o plano diplomático, com o mundo a apelar a Portugal para que reconhecesse a independência das colónias, através de várias resoluções da ONU para que a guerra acabasse. Sabíamos ainda que o descontentamento das elites militares aumentava cada vez mais, mas nunca esperámos que a revolução estivesse tão próxima”.

Revolução, cuja notícia do seu início chegou à fábrica de componentes elétricos, em Bruxelas, às oito da manhã do dia 25 de Abril de 1974, e ao conhecimento de Florival Baiôa através do seu chefe, que lhe disse para ir ouvir a rádio que existia no complexo, que naquele dia não precisaria de trabalhar. Dispensava-o, para que ficasse atento às notícias. “Foi o que eu fiz – o dia inteiro sentado numa cadeira, com o ouvido colado ao aparelho a escutar o desenvolvimento da revolução, através da rádio belga. Sozinho naquela função, porque era o único português ali a trabalhar, muito contente, sem ainda acreditar no que se estava a passar. Dali, já de noite, fui diretamente para o Pantoufle. Estávamos todos muito entusiasmados mas, ao mesmo tempo, com muitas dúvidas relativamente à origem do golpe de Estado, pois havia o receio de ter ser sido perpetrado pela extrema-direita. Depois, começámos a telefonar para a família e fomos clarificando o que se estava a passar… ainda sem certezas de nada. No café, já perto da meia-noite, um português, taxista em Bruxelas, disse que ia imediatamente para Portugal e rapidamente encheu o táxi, logo ali, com refugiados portugueses exilados há 20 anos – desesperados de saudades da nossa terra, loucos por regressarem”.

Florival Baiôa regressou ao País cerca de um ano depois desse memorável dia. “Não vim logo, fui mais cauteloso porque não havia ainda qualquer fiabilidade quanto à política que iria ser seguida. Só regressei na altura em que saiu a legislação para absolver desertores e refugiados políticos – cheguei a Portugal a 11 de março de 1975, dia em que o Spínola quis fazer o golpe de Estado. Voltámos os mesmos três que abalámos daqui, a Rita, que era a única que tinha carta, a conduzir desde Bruxelas, com uma casa em cima do tejadilho da Renault 6 e o coração cheio de sonhos”.

Hoje, 49 anos depois da Revolução dos Cravos, Florival Baiôa é perentório relativamente à mudança operada no País. “Desde que entrámos para a União Europeia foi dado um salto enorme a todos os níveis, as melhorias são visíveis – os hospitais, as estradas, as escolas, a cultura. Há uma grande melhoria comparativamente àquela altura”.

Contudo, as suas críticas à classe política portuguesa e ao estado económico e social em que o País atualmente se encontra não deixam de ser contundentes: “Há muita gente, que ganha 800 ou 900 euros, que neste momento não consegue pagar a renda da casa, pessoas que uma vida inteira trabalharam e necessitam de pedir por comida, a pobreza vai atingindo a classe média e os reformados, de forma galopante. Os políticos têm corrompido e deteriorado a democracia, a torto e a direito, com aproveitamento financeiro e um problema de corrupção enorme. A democracia tem de ser dinâmica e não pode deixar de olhar para algo que é substantivo – a felicidade e o bem-estar das pessoas. O que me deixa extraordinariamente consternado é a ocupação de todo o espaço político pelos partidos e por alguns sindicatos, sem possibilitarem a participação ativa dos cidadãos, que os partidos têm querido adormecer, por se sentirem ameaçados. O poder político, central e local, deixou de escutar os cidadãos e isso é dramático. É isto o que hoje mais me choca nesta democracia portuguesa gravemente doente”.

 

Oh Captain, my Captain

Era sempre bom encontrar o Baiôa. Cruzarmo-nos com ele nas ruas de Beja. Ainda que muito raras, há pessoas abastadamente encantadoras que, num breve cumprimento cordial ou numa curta conversa de circunstância, nos elevam, invariavelmente, o mais genuíno sorriso que os nossos músculos da boa disposição nos podem dar. O Baiôa era assim. Um mágico criador de inesgotáveis microcosmos de alegria, com os quais nos ia, generosa e quotidianamente, presenteando. A grandeza da sua inata aptidão para tornar o nosso caminho mais aconchegante e luminoso era comparável ao confessional amor que tinha pela sua cidade, à coragem e determinação das batalhas que em seu nome empreendia, temendo vê-la esquecida, triste. Foi sempre com esse desígnio, de valorizar a sua milenar Pax Julia, de sublinhar a identidade daqueles que nela têm raízes, dos que lhe querem bem, que o Baiôa presidia à Associação para a Defesa do Património Cultural da Região de Beja, que organizava as festas das Maias e do Azulejo de Beja, que ciceroneava, com orgulho incontido, as visitas guiadas pelo centro histórico da urbe com a paz inscrita no seu nome. Foi sempre com esse propósito de dignificação, sublinhando a todos, alto e bom som, que Beja merece mais, que se desdobrava em reuniões com poderes decisórios da região, de Lisboa, em Bruxelas. À sua cidade nunca deixou, por um momento que fosse, de lhe manifestar o eloquente amor que por ela sentia. Ainda há dias confessava que a magana o andava a rondar mais do que o costume. Mas que haveria de a ludibriar, uma outra vez, pois tinha dois livros para acabar (um sobre o hospital velho e outro sobre a história de Beja). Não era altura para se deixar levar, havia coisas por fazer. Há, então, coisas por fazer. Assim sendo, talvez a maior homenagem que cada um de nós, bejenses, poderá prestar a este homem tão importante, invulgarmente único, é prosseguir o seu caminho, aprender com os seus doutos ensinamentos de perseverança, deixar o conforto do sofá sempre que necessário, colocando toda a nossa energia e paixão nas justas causas da comunidade. Espero, tão sinceramente, que o seu desígnio de uma Beja feliz e próspera se cumpra. Para que o Baiôa, lá onde há de estar a esbanjar charme, nos tire, adornando com o seu magnífico sorriso, o seu chapéu.

 

Texto | José Serrano

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