Diário do Alentejo

Antes pão do que fortuna

05 de agosto 2023 - 13:00
“Trigo barbela” preserva variedade de trigo ancestral e um dos agricultores está em Beja
Foto | Nélson PatriarcaFoto | Nélson Patriarca

“Antes pão do que fortuna”. Esta variedade de trigo esteve quase a desaparecer, mas, atualmente, há quem arrisque a semeá-la e até já é possível comprar farinha on line para fazer o pão de antigamente. Luís Figueira, de Beja, é um dos agricultores que não a deixaram morrer.

 

Texto Aníbal Fernandes

 

É um cereal que antigamente era muito semeado em Portugal e, por isso, bastante adaptado aos nossos solos e clima.

 

O trigo barbela – também chamada de escravo –, introduzido no nosso país pelos árabes, no século VIII, com o advento dos trigos melhorados caiu em desuso e apenas a teimosia de alguns e a utopia de outros impediu que desaparecesse completamente do mosaico agrícola nacional. Esta é a estória de um homem que há cerca de dois anos resolveu deitar mãos à obra e de o fazer reaparecer nos barros de Beja.

 

Mas isso só foi possível porque, no Cadaval, um outro membro da “tribo da barbela” conseguiu preservar a semente ao longo de várias décadas e a dispensou para cultivo.

 

O objectivo era claro: semear, colher e moer um trigo que desse uma farinha que nos trouxesse de volta o pão tradicional, feito a partir de sementes autóctones, sem herbicidas e adubos e que dinamizasse a economia local.

 

Foi desta premissa que Luís Figueira partiu antes de se pôr à estrada para ir ao Cadaval buscar a semente que lhe permitiu fazer a primeira seara da variedade de trigo barbela. Lá, no distrito de Lisboa, foi onde João Vieira, apercebendo-se de que a variedade estava a desaparecer, resolveu, há cerca de duas décadas, preservar a semente para a fornecer para cultivo.

 

Até à primeira metade do século XX eram os agricultores que, ano após ano, guardavam as sementes para a campanha seguinte. No entanto, nas décadas seguintes, as sementes saíram gradualmente do seu controlo e passaram para as mãos das grandes multinacionais.

 

Acresce que com o aparecimento das novas variedades, muito mais produtivas, a barbela passou a ser minoritária no mosaico cultural nacional, apesar de “vingar em solos pobres onde os trigos melhorados não vingaram”, diz Luís Figueira, explicando que o trigo barbela “tem raízes verticais, o que lhe permite ir buscar nutrientes a maior profundidade, dispensando o adubo”.

 

Acresce que com canas altas tira luz às ervas daninhas que, assim, não crescem tanto.

 

Na campanha de 2021/22, nos cerca de sete hectares de sequeiro de que é proprietário, no Alcoforado, às portas de Beja, resolveu semear metade com a variedade barbela e o restante com trigo melhorado. O ano hidrológico correu “mais ou menos” e choveu espaçadamente, ao longo dos meses, 200 litros de água por metro quadrado.

 

O resultado foi surpreendente, ou talvez não: a safra do trigo antigo e do moderno equipararam-se, com vantagem para o barbela, cujos custos de produção tinham sido menores, uma vez que dispensou adubos e herbicidas. Feitas as contas, deu para guardar semente para a campanha seguinte, moer 800 quilos de farinha, em Castro Verde, e ainda produziu boa palha para a alimentação animal.

 

Já a campanha seguinte não correu de feição. O ano foi madrasto em termos de água, com apenas cinco litros por metro quadrado. A seara saiu curta e deu apenas para aproveitar a semente para a campanha do próximo ano. Fez a ceifa em junho e recolheu apenas 700 quilos.

 

Mesmo assim, Luís Figueira não desiste. “Quando se tem pequenas áreas para cereal, querer fazer o mesmo que faz quem tem grandes explorações deixa-nos sem qualquer poder concorrencial”, explica o também enfermeiro, que resolveu apostar num nicho de mercado, com “um produto com pouco glúten e rico em nutrientes”.

 

Tudo isto foi possível porque o já citado João Vieira, no Cadaval, teve a audácia de preservar uma semente que começou a cair em desuso há mais de meio século.

 

Neste momento, já existem alguns produtores em atividade que estão a tentar formar uma associação que terá como primeiro objetivo a certificação da variedade junto do Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (Iniav), com o apoio de uma instituição universitária.

 

REVOLUÇÃO VERDE E AGROECOLOGIA  

A Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) também se interessa sobre o tema e no seu site explica a importância do trigo mole – no qual o barbela se integra – na história e na sociedade.

 

Este tipo de cereal, que representa cerca de 95 por cento das mais de 700 milhões de toneladas de trigo cultivadas anualmente, surgiu há cerca de 10 mil anos e resulta de um processo de hibridização espontânea de outro tipo de trigo.

 

No início dos anos 60 do século passado – e ainda hoje –, a desnutrição nos países em desenvolvimento era um grave problema. Norman Borlaug, um engenheiro agrónomo e biólogo americano, durante essa década, desenvolveu um projeto de trabalho que tinha como objetivo aumentar a produção através do cruzamento de milhares de variedades de trigo de todo o mundo.

 

O desígnio foi conseguido, mas as culturas ficaram mais dependentes de fertilizantes e rega intensiva.

 

Em meados do século passado, com o controlo das sementes a passar para as mãos das grandes empresas, “a otimização de processos de hibridização e a comercialização de sementes híbridas tornou-se generalizada, entre outros avanços tecnológicos, como a modificação genética”, lê-se no site da FCUL.

 

Multimédia0

 

A obrigatoriedade de registo oficial de cada variedade e a “implementação de políticas e incentivos à agricultura”, longe de “favorecer os pequenos agricultores” deixou-os nas mãos dos grandes grupos. No entanto, houve quem resistisse, como foi o caso de João Vieira, no Cadaval.

 

Quem descortinou na “revolução verde” um impedimento à atividade dos pequenos agricultores e com a sustentabilidade dos recursos mobilizou-se em torno da agroecologia, “uma resposta holística, que promova a reconciliação da agricultura e das comunidades locais, com os processos naturais” e que “promove a independência do agricultor e a produção local e diversificada”.

 

É de referir que em março de 2011, Olivier Schutter, relator especial das Nações Unidas para o Direito à Alimentação, apresentou o relatório “Agroecologia e o direito à alimentação”, em que defende que, em certas regiões, este conceito, devidamente apoiado, pode duplicar a produção de alimentos em 10 anos, e conduzir “à mitigação/adaptação climática, combatendo a pobreza rural”.

 

É aqui que entra o trigo barbela, Luís Figueira e João Vieira e um conjunto de produtores que não deixam acabar com esta variedade, para além de outras como o massaruco, angelino, preto-amarelo e o raspe-negro, bem como uma variedade incomum de grão-de-bico negro.

 

À VENDA NA INTERNET

A farinha de trigo barbela é integral e está à venda na Internet. É apresentada como uma variedade ancestral, “muito importante na manutenção da saúde”, particularmente, do “sistema nervoso e cardiovascular”, possuindo um teor muito baixo de glúten.

 

O preço varia entre os 3,10 euros por quilo e os 72 euros em sacas de 25 quilos. Também se pode encomendar o pão já confecionado: é descrito como um “pão de aspeto rústico, côdea escura e crocante, miolo leve e húmido”.

 

No site que consultámos o quilo estava à venda a 4,67 euros.

Comentários