Diário do Alentejo

Raça garvonesa: da ameaça de extinção à mesa dos portugueses

01 de julho 2023 - 12:00
Aposta passa pela promoção da qualidade da carne em nicho de mercado
Foto | Ricardo GuerreiroFoto | Ricardo Guerreiro

No final do século passado restavam poucas dezenas de exemplares, mas com o capricho de alguns, a visão de outros e o trabalho de muitos a vaca garvonesa é hoje uma realidade presente nos campos do Baixo Alentejo e de raça em perigo de extinção passou a ser mais um ex-libris da região a preservar.

 

 

Texto Aníbal Fernandes

 

Em meados da década de 80 do século XX existia um único touro reprodutor e o total de efetivos da raça garvonesa não ultrapassava as sete dezenas de cabeças.

 

É aqui que o papel de António Semedo, médico, de Santana da Serra e ex-presidente da Câmara Municipal de Ourique, se revela de uma importância fundamental. É a ele que todos os entrevistados pelo “Diário do Alentejo” para este trabalho atribuem a responsabilidade da salvação desta raça de bovinos autóctone que no passado povoava o território onde as planícies do Sul se encontram com as serras algarvias.

 

A Direção-Geral de Agricultura e Veterinária (DGVA) diz que as três raças – alentejana, garvonesa e algarvia – pertencem ao mesmo tronco genético, mas a distância “demonstrada entre a alentejana e a garvonesa sugere o isolamento destes grupos e as influências dos vários habitats”.

 

Não existem números oficiais atualizados, mas, segundo a mesma entidade, em 2018 estavam inscritos no “Livro Genealógico” 776 fêmeas e 24 machos, divididos por duas dúzias de criadores. António Aires, presidente da Associação de Agricultores do Campo Branco (AACB) – responsável pela defesa da raça –, confirma a estimativa e diz que é seu objetivo “manter as características” da raça e aumentar o “número de produtores”.

 

É aqui que entra a novidade: a carne da garvonesa poderá, em breve, vir a ser comercializada – como produto de nicho – pelo site carnesdamontanha.pt, uma parceria que está em desenvolvimento e que permitirá aos produtores mais uma fonte de rendimento, o que contribuirá para a manutenção da espécie. Já foi abatida meia dúzia de exemplares, mas o processo ainda se encontra em fase de teste.

 

Pedro do Carmo, deputado do PS eleito por Beja e presidente da Comissão Parlamentar de Agricultura e Mar – também ele ex-presidente da Câmara Municipal de Ourique – tem a sua quota-parte de responsabilidade na salvação da espécie e nos novos caminhos que se estão a trilhar.

 

No seu tempo de autarca a garvonesa foi transformada em ex-libris da Feira de Garvão e terá sido a partir daí que o interesse em preservar a sua existência se reacendeu por parte de alguns produtores. Foi com o primeiro núcleo à guarda da Direção-Regional de Agricultura do Alentejo na herdade da Abóboda, em Vila Nova de São Bento, Serpa, que a AACB e o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e da Costa Vicentina procederam à “caracterização morfológica e registo como raça autóctone”, o que foi “essencial para o envolvimento dos criadores que, muitas vezes contrariando tendências económicas mais imediatas, têm abraçado a criação da garvonesa”.

 

Hoje é possível encontrar vacadas da espécie um pouco por todo o lado na região que vai de Ourique a Barrancos e pelo litoral alentejano até Santiago do Cacém. Cristopher Vilhena é um dos produtores que se deixou entusiasmar pela raça garvonesa – também conhecida por gado “farrusco” ou “chamusco”.

 

Diz que começou por entender que “não se devia deixar ir embora o trabalho do senhor Semedo”. Hoje tem uma manada com 54 cabeças em Alcaria Formosa, Ourique, mas não coloca de parte a possibilidade de aumentar o efetivo: “Aqui não tenho mais espaço, mas estou a pensar, seriamente, em acabar com outro tipo de animais e substitui-los por mais garvonesas”, revela.

 

Quanto à comercialização da carne mostra o seu apoio e considera que é uma tentativa “de viabilizar economicamente” o investimento com “mais alguma coisa”.

 

Também Jorge Turibio alinhou na aventura da garvonesa. Tem quase duas centenas de cabeças divididas por herdades em Barrancos, Moura e Serpa. Uma estratégia, explica, para “evitar a consanguinidade”, um problema quando os efetivos são reduzidos.

 

“Escolhi esta raça por ser autóctone e se adaptar bem à nossa região, mas não foi fácil começar”, explica. Desde logo porque eram poucas e velhas as vacas disponíveis, o que dificultava a reprodução, mas lá conseguiu adquirir uns exemplares ao cavaleiro tauromáquico Tito Semedo que, entretanto, tinha continuado o trabalho do pai.

 

Quanto à comercialização da carne diz ser uma iniciativa “muito positiva” da AACB, mas que apresenta alguns desafios: “Devido à pouca quantidade existente é difícil marcar presença no mercado, logo, a estratégia tem de passar por comercializar em mercados de nicho. Há que estudar como o fazer, em que moldes e em que períodos”. Ou seja, privilegiar a qualidade em contraponto da quantidade. E quanto a isso não tem dúvidas: “Já fizemos algumas provas e a carne é excelente”, garante Jorge Turibio.

 

PAIXÃO PELA RAÇA

Ricardo Guerreiro, fotógrafo e realizador, tem as suas primeiras memórias da raça quando visitava o avô na herdade do Arzil, no concelho de Ourique, na década de 80 do século passado. Por lá pastavam umas vacas “encarnadas de testa preta” – assim as descrevia o vaqueiro local – que lhe chamavam a atenção.

 

Anos depois, a sua curiosidade passou a ser profissional e decidiu estudar a raça e fazer um livro de fotografias temático que foi lançado recentemente e pode ser adquirido directamente através do seu Facebook.

 

Tomou contacto com a raça estava ela em perigo de extinção e acompanhou todo o processo de recuperação. A propósito da ideia de comercializar a carne, refere que fica “contente, especialmente, pelos criadores, porque pode contribuir para preservar a raça”, mas diz que a sua ligação à raça é puramente “romântica”.

 

“Não quero saber se a carne é boa ou má”. O que o preocupa é, antes de tudo, a preservação da espécie por uma “questão identitária”, preocupação que vê pouco valorizada por parte dos portugueses em geral.

 

RÚSTICO AS CARACTERÍSTICAS DE UM GADO RÚSTICO

Segundo a DGVA, “a rusticidade dos bovinos garvoneses, demonstrada na sua adaptação a condições adversas do clima, da muito variável disponibilidade e qualidade de alimentos, justificou a sua preferência para os trabalhos no campo em que a força de tração e bom temperamento eram essenciais.

 

Com a expansão da mecanização na atividade agrícola, o interesse pela raça garvonesa foi decrescendo em favor de outras com maior aptidão para a produção de carne”. A propósito, Pedro do Carmo caracteriza a espécie de uma forma curiosa: “É um animal que come pedras e as transforma em carne”.

 

Esta raça distingue-se pelo seu perfil convexo e longilíneo e, nas fêmeas, pela pelagem castanho avermelhada, apresentando o dorso mais claro, chanfro preto, cernelha preta, extremidades dos membros e da cauda pretas, focinho e contorno das aberturas naturais e mucosas de cor clara; nos machos, pela cor preta dominante em todo o corpo, dorso mais claro e avermelhado, focinho e contorno das aberturas naturais e mucosas de cor clara.

 

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