Diário do Alentejo

O grupo da taberna do mestre António Luís Fialho

24 de junho 2023 - 12:00
Grupo Coral e Etnográfico Os Ceifeiros de Cuba celebra 90 anos
Fotos | Ricardo ZambujoFotos | Ricardo Zambujo

Unidos por uma história com mais de nove décadas, a diferença de gerações não se faz notar nos palcos e muito menos durante os ensaios. Com 24 elementos, dos 12 aos 86 anos, a vivacidade que se vive dentro da sede do grupo Os Ceifeiros de Cuba não espelha os diferentes costumes e estórias que se unem em torno do balcão. Em conjunto, cantam, convivem e mantêm a tradição que nasceu numa taberna da vila. O “Diário do Alentejo” foi conhecer o grupo que é uma das identidades do povo cubense.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

Na sede do Grupo Coral e Etnográfico Os Ceifeiros de Cuba, numa das ruas típicas de calçada da vila, ainda se canta ao balcão. Com o copo sempre cheio, e um ou outro petisco que chega para acalmar o estômago, surge, de forma simples e natural, assim como o cante alentejano se habituou, uma e outra moda. Há nove décadas já os pais, avós e bisavós de alguns dos atuais Ceifeiros de Cuba se reuniam à roda do balcão da taberna do mestre António Luís Fialho para “puxar” um par de versos.

 

Perpetuou-se pelo tempo, embora sem “indícios ou vestígios” que o comprovem, que o Grupo Coral e Etnográfico Os Ceifeiros de Cuba foi criado no primeiro dia da Feira Anual de Cuba de 1933 por insistência do proprietário da taberna, tendo, inclusive, sido essa a sua primeira atuação oficial. Os registos só começam a surgir cinco anos mais tarde em documentos guardados na Casa do Alentejo, em Lisboa, e onde se fica a saber que com o Estado Novo o grupo sofreu, por alguns anos, uma alteração de nome.

 

Naquela ocasião começa-se a querer associar “os grupos corais que existiam às casas do povo e, então, Os Ceifeiros de Cuba passam a chamar-se Grupo Coral Casa do Povo de Cuba, sem qualquer justificativa”, explica ao “Diário do Alentejo” o jovem ensaiador, Jil Galinha.

 

Os anos que se seguiram mudaram completamente a forma como o cante alentejano e, consequentemente, os grupos corais eram vistos pela sociedade. E à semelhança, nas décadas de 60, 70 e 80 assistiu-se ao boom inesperado dos Ceifeiros de Cuba, tornando-os não só no ex-líbris da vila cubense, como num grupo de renome que percorria do País de norte a sul.

 

“Os anos 60, 70 e 80 foram realmente uma loucura. Os Ceifeiros de Cuba gravaram inúmeros singles e LP [álbuns] e há registo que, por exemplo, por essa altura foram duas semanas para Lisboa ganhar 10 vezes mais do que ganhavam num dia de trabalho aqui na ceifa. Isto, há 50 anos, mostra bem a importância que tinham”, salienta.

 

Contudo, os anos que se seguiram vieram balançar a sua estabilidade e, novamente, alterar a maneira como eram encarados. A mudança de interesses, nos finais da década de 80 e início de 90, dos jovens colocaram os grupos corais, incluindo Os Ceifeiros de Cuba, num ciclo de “envelhecimento”.

 

“Houve tempos difíceis, principalmente os dos meus pais. Através de fotografias conseguimos perceber que Os Ceifeiros eram indivíduos na ordem dos 30 e 40 anos que foram envelhecendo e foi nessas últimas duas décadas (80 e 90) que o cante ficou também ele envelhecido”, realça.

 

E acrescenta: “Para mim, nesta altura, o cante não esteve em decadência, porque a própria atividade dos Ceifeiros era muita, mas o que aconteceu foi que não houve um rejuvenescimento de cantadores, porque os jovens também não estavam para aí virados, havia outras coisas para descobrir e não queriam integrar os grupos”.

 

Além disso, segundo Jil Galinha, também os “confrontos geracionais” que existiam dentro dos grupos corais foram um dos motivos que fez os jovens desmotivarem-se quanto ao cante alentejano. “Integrar um grupo coral para um jovem não era fácil, porque os costumes e as atividades de quem lá está estava eram outros e, por vezes, os estilos de vida não se conseguiam interligar. Mas, hoje em dia, felizmente, já vamos tendo poucos [confrontos geracionais], porque os mais velhos também perceberam que havia a necessidade de os jovens virem para que o cante não acabasse”.

 

Multimédia0

 

O REJUVENESCIMENTO DE UMA IDENTIDADE QUE NÃO MUDA

Espalhadas pelas paredes do antigo teatro de Cuba, atual sede do grupo coral, as fotografias contam a história do percurso dos Ceifeiros. À direita da porta principal as molduras com os diferentes cantadores homenageiam quem por lá passou. Mais adiante, e de frente para o pequeno palco de ensaios, sobressaem os nomes de António Luís Fialho, Francisco Vargas, João Fitas, Ermelindo Galinha, Xavier Frangãos e Francisco Cabaça, antigos mestres do grupo.

 

Volvido quase um século, as distintas vozes e orientações que têm vindo a construir Os Ceifeiros de Cuba não deixaram que a identidade característica de 1933 se perdesse. O típico “cantar à Cuba” com o prolongamento dos versos e as “modas de barro”, ou seja, um cante mais duro e intenso, têm-se perpetuado até aos dias de hoje.

 

 “Como qualquer outro grupo com esta idade, ao longo dos anos foram vários os mestres que foram passando, normalmente, saindo devido à idade, e, por isso, substituídos de uma forma natural. O modo peculiar de cantar dos Ceifeiros de Cuba, como se costuma dizer, com um cante mais duro e intenso, ainda se mantém. O nosso objetivo é também conservar a nossa identidade, seja ela a coral, a indumentária ou a social”, recorda.

 

Para Jil Galinha, é esta ligação “histórica, social e familiar” que o grupo coral preserva com a “própria terra de Cuba” que o distingue dos demais e a principal razão para o contínuo crescimento. Embora também tenham sentido que nos últimos anos o “efeito da candidatura” do cante alentejano a Património Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) tenha começado a desaparecer, principalmente, em grupos formados depois de 2014, o mesmo tem ficado à margem dos Ceifeiros.

 

“Nem tudo foi bom na candidatura e um dos grandes problemas foi, por exemplo, os jovens terem ido embora com a mesma rapidez com que vieram, ou seja, não conseguiram criar raízes. Tudo o que é moda acaba e se as coisas não forem devidamente acompanhadas desmoronam, por exemplo, nós levámos cem anos a construir um grupo que pode acabar em um dia. E, na minha opinião, foi essa parte do património que faltou, ou seja, ganhámos o troféu, mas depois já não se trabalhou para o manter. Na Cuba, apesar de nem tudo ter sido positivo, conseguiu-se sempre aguentar o barco com alguma facilidade, porque houve sempre jovens a entrar”, refere.

 

Acrescentando de seguida que isso se deve ao facto desses novos elementos serem todos “filhos, netos e primos dos que já cá estiveram”, ou seja, “uma família”, estando “todos para o mesmo”.

 

A particularidade de na vila cubense ainda existirem “três ou quatro tabernas típicas como eram há 20, 30 e 40 anos”, segundo o ensaiador, é outra das razões para a longevidade dos Ceifeiros de Cuba e, consequentemente, do constante interesse dos mais novos em querer integrar grupos corais.

 

“Se existe o sítio onde ir, é normal que as coisas fluam, porque o comer um petisco, o beber um copo e o conviver está intrinsecamente ligado com o cante alentejano. Como ainda temos a sorte de ter as tabernas, continuamos a ter o hábito de lá ir e, mais uma vez, o de cantar. Nós aqui entramos em qualquer taberna e encontramos os jovens de 20 e 30 anos sentados à mesa com os homens de 70 e 80 anos, ou seja, há também uma micro-sociedade dentro destas tabernas que permite que o cante se vá renovando”, reforça.

 

Multimédia1

 

O FUTURO RISONHO PEDE UM NOVO CD E UM MUSEU

Ainda que Os Ceifeiros de Cuba vivam atualmente “os melhores anos” desde a sua criação, Jil Galinha acredita que os meses da pandemia deixaram marcas na sua história. Além da paragem do País que obrigou, consequentemente, à pausa dos ensaios e dos encontros, o grupo teve perdas importantes.

 

“Além de termos perdido alguns elementos que faleceram durante a pandemia, inclusive um rapaz novo para uma doença prolongada, que era um dos pontos importantes do grupo, tivemos também a perda de outros senhores com alguma idade que, por receio, por estagnarem ou porque deixaram de sair de casa, quando voltámos à atividade também já não voltaram connosco”, confessa o cantador de 26 anos.

 

“Contudo, com algum esforço temos feito com que as coisas aconteçam e até já conseguimos que elementos que tinham cá estado há, por exemplo, 15 anos, voltassem novamente”.

 

Para Jil Galinha, os grupos corais atuais precisam de “gente nova, com 20, 30 e 40 anos”, que deem uma “lufada de ar fresco”, com novas ideias e responsabilidades. Ainda que o objetivo passe por manter “da forma mais original possível” Os Ceifeiros de Cuba, é necessário que se trabalhem outras formas de cativar e preservar o que já foi construído até ao momento.

 

Assim, o grupo, que se prepara para gravar um novo CD, tem trabalhado no seu espólio para que no futuro possa existir um museu na sua sede que permita preservar a memória futura.

 

“Eu ainda nasci num tempo em que foi possível aprender com os mais velhos, mas, talvez, se os meus netos daqui a 50 anos se interessarem pelo cante e não houver ninguém que lhe transmita basta vir aos Ceifeiros ver, ouvir e ler. A cultura e a tradição são o que conta a história de um povo e nós [Os Ceifeiros de Cuba] somos a história deste povo de Cuba”, confirma.

 

Aos poucos, os rostos que antes cantavam ao balcão de forma espontânea começam a enfileirar-se no centro da sala. De braços cruzados, o som dos pés que se arrastam no chão só é abafado pelas vozes que, organizadamente, ecoam na sede. Dá-se início a mais um ensaio. Um dos poucos que os 24 Ceifeiros de Cuba terão antes das comemorações do seu 90.º aniversário. Durante o fim de semana subirão a palco homens que conhecem bem o peso de cada verso que cantam nas modas e rapazes que, embora nunca tenham vivido o amargo do sol do campo, carregam consigo as estórias que lhes foram passadas dos tempos de outrora.

 

Multimédia2

 

“CEIFEIROS DE CUBA, A IDENTIDADE DE UM POVO”

Entre hoje e domingo o Grupo Coral e Etnográfico Os Ceifeiros de Cuba assinala os “90 anos de história e tradição” de um grupo que é símbolo e identidade de uma comunidade.

 

Hoje, sexta-feira, o Parque Manuel de Castro, em Cuba, recebe um encontro de grupos corais, às 21:00 horas, assim como a atuação dos músicos Luís Simenta e André Godinho, às 23:30 e às 00:30 horas, respetivamente.

 

No dia de amanhã, sábado, segundo o ensaiador do grupo, Jil Galinha, além das atuações de António Caixeiro, do Maio – Grupo de Fado de Coimbra e de Rui Chora, dá-se o “momento alto” do evento com o “almoço comemorativo dos 90 anos”, às 13:00 horas.

 

“O almoço é aberto à comunidade, em que a refeição é oferecida na totalidade pelo grupo, quem foi ou é Ceifeiro não paga rigorosamente nada e quem não o é apenas o faz com as bebidas, isto porque o que nós queremos é que a vila de Cuba, se já está connosco, fique ainda mais”, reforça.

 

Para a tarde de domingo, dia 25, está também agendado um encontro de folclore, às 17:00 horas.

 

“Esta é uma festa para que todos percebam que este símbolo, esta casa e esta identidade que são Os Ceifeiros não está só ao serviço do grupo, mas também de toda a comunidade, porque somos parte da sua história”, afirma.

Comentários