Diário do Alentejo

“O castelo de Beja, que eu adoro, já faz parte da minha vida”

10 de junho 2023 - 10:00
Exposição de pintura do artista afegão Kaihan Hamidi é inaugurada hoje na fortificação
Fotos | José SerranoFotos | José Serrano

O castelo de Beja recebe, a partir de hoje e até ao próximo dia 2 de setembro, a exposição de pintura de Kaihan Hamidi. O artista, refugiado afegão a viver na cidade há pouco mais de um ano, apresentará ao público um acervo original de 15 obras aquarelísticas, retratando momentos e lugares das cidades de Cabul, Lisboa e Beja.

 

Texto José Serrano

 

A exposição de pintura de Kaihan Hamidi, pintor afegão a residir em Beja, é inaugurada hoje, dia 9, no castelo da cidade. Uma mostra que apresenta ao público, até ao próximo dia 2 de setembro, 15 trabalhos aquarelísticos de visitação a Cabul, a Lisboa e, sobretudo, a Beja, “as suas ruas e, inevitavelmente, o seu castelo”, acentua.

 

Fundamental, porque o pintor, expondo que os locais históricos são para si fonte de inspiração, podendo-se estes frequentemente encontrar nos seus trabalhos, manifesta uma enorme dedicação ao monumento, ao ponto de todos os dias colocar, na sua página de Facebook, uma fotografia da cidadela bejense: “Eu adoro o castelo, faz agora parte da minha vida e sinto-me muito bem a contemplá-lo e a reproduzi-lo em tela”. Desta forma, quando a certeza de expor em Beja lhe foi confirmada, só havia, para Kaihan, um local expositivo de eleição – “Teria de ser no castelo, e eu estou muito feliz”.

 

Esta paixão do artista pela fortificação, mandada construir por D. Dinis, dever-se-á, em parte, da proximidade da torre de menagem à casa que o pintor e a sua família habitam desde março de 2022.

 

A vinda de Cabul para Beja, cidades situadas em diferentes continentes e que distam mais de oito mil quilómetros, foi imposta pelo estatuto de refugiados a que se viram necessitados conseguir, a exemplo de milhares de outros seus concidadãos, como consequência da retomada do poder, no Afeganistão, por parte dos taliban, em agosto de 2021.

 

Nascido na localidade de Ghazni, Kaihan residia, desde 2011, na capital afegã, onde geria a “maior galeria de arte da cidade”, local onde tinha à venda as suas obras e onde dava aulas a estudantes de desenho – “Não era muito o que ganhava, mas era o suficiente para eu a minha família vivermos”.

 

Contudo, manifesta que parte dos seus concidadãos sempre teve dificuldade em acolher pacificamente, sem qualquer juízo de valor, algumas manifestações artísticas.

 

“Mesmo antes da chegada dos taliban, o meu país não era um bom sítio para quem exerce trabalho artístico. Há muitos que o apreciam e dele desfrutam, mas outros tantos têm ‘problemas’ com as artes. No meu país podes encontrar as piores pessoas e situações e as pessoas mais interessantes e as melhores situações, é muito curioso…”, reflete.

 

E prossegue: “Todo esse tempo em que mantive a galeria aberta, nunca me senti completamente à vontade. De vez em quando, certos homens entravam, olhavam para mim sem dizer uma palavra, andavam devagar à volta dos meus quadros, avaliando. Era assustador, porque eu ficava a pensar – ‘por que é que ele veio? O que pensará da minha pintura?’… é-me difícil explicar o que sentia… medo... E tudo isto tem a ver com a religião. Todos os problemas do meu país estão relacionados com a religião”, manifesta.

 

Ainda assim, refere Kaihan, a melhor altura que o país viveu coincidiu com o período em que desenvolveu as suas atividades, como pintor e galerista, em Cabul: “Os vinte anos que os militares da NATO estiveram no Afeganistão [os aliados decidiram intervir no país, em 2001, após os ataques da al-Qaeda às Torres Gémeas, em Nova Iorque], foi o melhor tempo para as pessoas mudarem as suas vidas, a melhor oportunidade. Eu, por exemplo, consegui organizar, com os meus alunos, em 2016, a maior exposição de pintura já feita em Cabul e, pouco tempo depois, participei numa exposição coletiva, realizada na Índia, que reuniu pintores de 76 países. Mas a religião, uma vez mais, acabou por não permitir que as pessoas mudassem. É como se fosse um muro, impeditivo das pessoas decidirem o seu caminho”.

 

Cerca de um mês após a saída de Cabul das tropas da NATO (os últimos soldados da coligação saíram a 30 de agosto de 2021), e da tomada do governo do país por parte dos taliban, Kaihan, através de um programa de retirada de cidadãos afegãos, a quem lhes foi posteriormente atribuído o estatuto de refugiados, conseguiu abandonar, tal como milhares de outros compatriotas, o seu país.

 

“Transportaram-nos, de avião, para o Qatar, onde ficámos cerca de dois meses”. Dali, foram distribuídos por vários países: “Eu e a minha família ficámos inseridos num grupo (onde havia artistas, jornalistas, ativistas de direitos humanos) que foi para Lisboa, e, dois meses e meio volvidos, para Beja [através de uma operação conjunta, em sequência da emergência humanitária no Afeganistão, que envolveu as autoridades nacionais e do Qatar, assim como organizações norte-americanas].

 

Chegado a Beja, cidade da qual “nunca tinha ouvido falar”, imediatamente estranhou a falta de gente nas ruas. “Eu vinha de uma cidade acelerada [Cabul], com mais de quatro milhões e meio de habitantes, e quando aqui cheguei não vi praticamente ninguém. Depois o tempo mudou, veio o sol, as pessoas começaram a sair de casa e eu comecei a ficar menos preocupado e triste”.

 

Porém, foi a barreira linguística que mais constrangimentos lhes colocou. “Tivemos aulas de inglês enquanto estivemos no Qatar, mas de português nada sabíamos, e estarmos num país com hábitos diferentes… os meus filhos, pequeninos, sem conseguirem comunicar na escola. Estávamos todos muito confusos. Foi difícil, ao princípio”, recorda.

 

O facto de serem a única família de refugiados afegãos a vir para Beja – “estávamos aqui sozinhos” – dificultou em parte, também, o início da aventura por terras alentejanas, que “pouco a pouco” se foi tornando menos preocupante.

 

“Lentamente, as coisas foram melhorando. A minha mulher arranjou trabalho na Santa Casa da Misericórdia de Beja e os miúdos começaram a aprender português (qualquer um deles fala melhor do que eu). A capacidade de comunicar trouxe-lhes contentamento e os meus filhos, hoje, já têm os seus amigos da escola”.

 

Um desenvolvimento positivo, no dia a dia da família, que permite a Kaihan transmitir: “Ver os meus filhos felizes é, para mim e para minha mulher, o paraíso. Hoje temos uma vida serena e posso dizer que gosto de viver aqui, onde as pessoas são, para connosco, usualmente, muito simpáticas (também encontramos, pontualmente, quem o seja menos, e eu não percebo qual a razão…) ”.

 

No entanto, a paixão de Kaihan por Lisboa, onde o pintor vai, amiúde, comprar telas e tintas, é, por este, sublinhada: “Que me perdoem os meus amigos bejenses, mas eu penso muitas vezes em um dia conseguir lá morar e abrir uma galeria de arte no centro daquela cidade maravilhosa, única”.

 

Um amor confesso à capital de um país que não quer deixar – “decidi que quero ficar viver em Portugal para sempre” – e para o qual pretende – “tudo estou a fazer para o conseguir” –, trazer a sua família mais próxima que vive no Afeganistão, com a qual fala, de forma regular, semanalmente – “a não ser que lá não se consiga apanhar a Internet” –, pondo-o a par da difícil situação que se vive no país e de novas medidas governamentais, repressivas, que vão surgindo.

 

“O meu maior sonho é conseguir trazer a minha mãe (o meu pai morreu o ano passado), as minhas irmãs e o meu irmão para Portugal. Só quando toda a família estiver junta e em segurança – porque para mim o mais importante é sentir que a família está segura – eu terei paz”, sublinha.

 

Desta forma, a ideia de um dia regressar ao seu país não surge, ainda que timidamente, a Kaihan: “O Afeganistão está em guerra há 50 anos, com as pessoas a viver situações que eu não posso descrever. Quando penso nisso, sinto que aquele não é o meu país, que não me é possível voltar a querer lá viver. Para mim, basta”, enfatiza o artista.

 

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O pintor, que atualmente não consegue viver exclusivamente do seu reconhecido talento artístico, “em Cabul era conhecido como ‘deus das aguarelas’”, trabalha numa empresa agrícola na região (fazendo trabalhos de carpintaria, de pintura, de desenho para a sinalética da exploração), reservando as noites e, sobretudo, os fins de semana para o desenvolvimento da sua arte, almejando que, em breve, esta venha a ser a sua principal fonte de rendimentos. “Viver da pintura é para mim um objetivo bem definido”, diz.

 

O seu talento, inato – “o gosto pelo desenho e por pintar surgiu-me, naturalmente, em criança” –, vai já sendo reconhecido pelos seus atuais “conterrâneos” bejenses, que o abordam na rua, felicitando-o pela beleza da sua pintura, que retrata maioritariamente paisagens urbanas, gente em momentos do quotidiano, a figura feminina (www.kaihanhamidi.com).

 

“Gostarem e falarem comigo acerca do meu trabalho é, para mim, fantástico. Dá-me alento para eu continuar a manter a regra principal da minha pintura que é conferir aos meus quadros uma boa energia, que se reflita, depois, em quem os veja”.

 

Uma premissa que, esclarece, lhe advém do seu passado, do ter presenciado, no seu país de origem, inúmeras “situações negativas” que o deixavam “muito triste”, contrabalançado esse sentimento com a escolha de assuntos pictóricos capazes de transmitir, através do uso personalizado da cor, “sentimentos positivos”.

 

Uma positividade que está a dar os seus frutos, materializados na exposição bejense, com estreia marcada para as 16:00 horas, bem como na exibição programada, dia 17, para a cidade sueca de Oskarström.

 

Até lá, e enquanto a sua meta de viver na capital das sete colinas não for alcançada, Kaihan Hamidi continuará a retratar as ruas da cidade que o acolheu e que carrega no seu ancestral nome a pax com que o artista sempre sonhou.

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