O calor, a incerteza e a dureza do trabalho da mina serviram de pano de fundo à peça de teatro “Na Hora da Bucha”, produzida por Belén Pasqualini. Interpretada na primeira pessoa por aqueles que outrora viram no trabalho mineiro o sustento das suas famílias, a peça é uma homenagem a quem não teve a sorte de voltar a subir.
Texto Ana Filipa Sousa de Sousa
Na mesa rodeada de cadeiras sobram lugares. Sentados, com o vinho, o pão e o queijo, estão aqueles que a vida encarregou de não deixar lá em baixo. O negro do palco não assusta, mas, em tempos, o escuro da mina fazia tremer mesmo os mais corajosos. A mistura entre o que se interpreta e o que se viveu, por vezes, confunde-se e, quando assim o é, as lágrimas escorrem.
Vítor Larguinho, José Sebastião, Edmundo Vilhena, Rui Gomes, Tito Oliva e José Vítor são ex-mineiros. Ainda que nem todos tenham partilhado a mesma mina, são companheiros de vida. E de sorte. Desceram ao fundo da mina um número incontável de vezes, mas sabem de cor todos os seus companheiros que não voltaram a subir.
“Estamos a falar de um tempo há 30 anos, em que as condições de um mineiro não eram as mesmas que são hoje. A mim mandaram-me para a mina com a roupa e os sapatos que levava e ninguém me disse: ‘tens de fazer isto ou tens de fazer aquilo’ ou ‘tens de te defender disto ou daquilo’, simplesmente fui de olhos tapados”, conta ao “Diário do Alentejo” (“DA”) Rui Gomes, de 70 anos, no fim de mais um ensaio.
Contrariamente à maioria, José Vítor não se reformou na mina. Após 12 anos de trabalho mineiro decidiu “resolver o problema noutro lado” e procurar um novo ofício. “Andei 12 anos no fundo da mina, era um trabalho duro que nem toda a gente aceitava. Naquele tempo, como jovem, pensei em ir resolver o meu problema para outro lado, se não, quando chegasse aos 50 anos, já estava no cemitério. Consegui sair da mina e até hoje nunca mais lá voltei”, diz o antigo mineiro de 63 anos.
A palco, além dos seis mineiros, sobem também Diogo Narciso, de 16 anos, e Manuel Valente, de 74, “filhos da mina”. Nunca trabalharam nas profundezas, mas conhecem bem, pelas mãos e pelas palavras dos pais, a rispidez daquele lugar.
“Senti-me sempre filho da mina, conheço todas as barreiras e mineiros, porque ia buscar o meu pai todos os dias. Ele trazia-me sempre um bocadinho de enxofre e de linguiça que deixava para o fim da bucha, porque sabia que eu gostava… e eu fui buscá-lo todos os dias até começar a trabalhar”, relembra Manuel Valente.
Com eles, e homenageadas também durante a peça, estão as mães, mulheres e filhas de mineiros que, embora nunca tenham descido no malacate (palavra de origem espanhola, usada nas minas da Faixa Piritosa Ibérica, onde a vila de Aljustrel se inclui, e que se refere ao elevador no poço da mina), viveram de perto o perigo e a incerteza do trabalho mineiro.
Nos dias de hoje, asseguram que “as coisas estão diferentes”. A ventilação, o equipamento pessoal, a formação e as normas de segurança estão muito mais garantidas em comparação com há algumas décadas, contudo, “o perigo continua o mesmo lá em baixo”.
“Lá o perigo é iminente, a cada instante pode haver alguma coisa”, ressalta Rui Gomes. Edmundo Vilhena interrompe: “Ainda na semana passada aconteceu. Infelizmente, está sempre a acontecer”.
DO FUNDO DA MINA PARA CIMA DO PALCO
Aqueles que outrora faziam da extração de enxofre, zinco, cobre e chumbo o sustento das suas casas, hoje em dia, reformados, recordam as horas vividas a largos metros da superfície. A convite aceitaram contar as suas histórias, aquelas que revivem com saudades e aquelas que preferiam esquecer.
“Eu estava num almoço e a Belén [Pasqualini] estava numa mesa ao lado e deu-me sinal. Começou a falar comigo sobre a mina e perguntou-me se podia ir à minha casa fazer-me uma entrevista e depois vi transcrito no papel tudo o que eu lhe disse. E pelos vistos a todos os que estão aqui aconteceu-lhes exatamente a mesma coisa”, revela, entre risos, Rui Gomes.
José Vítor confirma que teve também uma abordagem semelhante. Diz que estava a começar o ensaio do seu grupo coral quando Belén Pasqualini “chegou de repente” e, sem a conhecer, deu-lhe permissão para assistir. “Depois, ao fim de um bocado, é que ela começou a falar sobre a peça e a perguntar se era possível arranjar mais duas ou três pessoas para virem fazer teatro. E eu até lhe disse: ‘Teatro? Fazer teatro? Se fosse cantar ainda mais ou menos, agora fazer teatro? Nós nunca fizemos teatro”, recorda com um sorriso.
Este foi o primeiro passo que a encenadora de 36 anos deu para iniciar o projeto “Na Hora da Bucha”. O objetivo era não só ouvir as histórias e episódios dos ex-mineiros, mas, essencialmente, meter os próprios protagonistas a interpretar e, inconscientemente, a contá-las na primeira pessoa, por isso “é que cada um põe parte da sua vida, da sua história e de coisas que fazem parte da sua essência nesta peça”, como a paixão pela columbofilia e pelo tocar harmónica.
“Vim a Aljustrel no ano passado fazer outra peça de teatro e fiquei apaixonada por este lugar. Estava decidida em contar esta história, porque, para mim, ainda que tenha obviamente a ver com a mina, [esta peça] é, sobretudo, sobre todo o condimento que faz parte da vila, desde os habitantes às tradições, às amizades e até às mulheres, que não trabalhando na mina fazem parte dela”, começa por explicar ao “DA” a atriz argentina.
Diz que chegou à Vila Mineira apenas com a data de estreia marcada e sem saber com quem e como iria levar o projeto em frente, mas que encontrou “estas pessoas que abriram o coração e aceitaram jogar”.
A RESPONSABILIDADE E O COMPROMISSO SOCIAL DO TEATRO
Para Belén Pasqualini, atriz desde os cinco anos, esta peça traz consigo um desafio e uma responsabilidade acrescida. Além de se apresentar como uma clara homenagem a todos aqueles que perderam a vida no fundo das minas, e a todos os que tiveram a coragem de um dia aceitar descer e trabalhar nelas, surge também com o propósito de mostrar que o coração e a entrega também fazem teatro.
“Eu queria mostrar que não se precisa de ser ator ou atriz para pisar um palco, que basta ter-se tido experiências. Eu faço isto há 30 anos e o compromisso que vi aqui, apesar de às vezes se esquecerem dos textos, foi muito grande e está em extinção”, realça, entre risos.
A atriz destaca ainda a particularidade de, à exceção de Diogo Narciso, o grupo ser composto por pessoas reformadas que precisam de se sentir “parte ativa da sociedade”, por tudo o que já lhe deram e por aquilo que ainda podem dar face à “quantidade de experiências” que carregam consigo.
Em relação à peça, que não tem agendadas sessões para além das duas que já decorreram nesta semana no Cine Oriental, em Aljustrel, espera ter sido “uma boa homenagem aos mineiros”, à vila e à cultura alentejana.