Diário do Alentejo

O universo das clarissas de Moura por mais de dois séculos

14 de novembro 2022 - 09:00
A ordem franciscana feminina instalou-se na cidade em 1610
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Dado a conhecer em maio, em simultâneo com uma exposição sobre o tema, o livro Convento de Santa Clara de Moura – Do esplendor à extinção teve nova apresentação em setembro. Foi no Centro Infantil de Nossa Senhora do Carmo, o outrora convento das freiras clarissas, e, por isso, carregada de um enorme simbolismo. Precisamente no dia em que se celebravam 412 anos da chegada da ordem franciscana feminina ao espaço. E à mesma hora. A obra da historiadora Marisa Bacalhau, que teve edição do município de Moura, relata “o universo feminino num convento de clausura” naquela cidade, com recurso a documentação.

 

Texto Júlia Serrão

 

Quando a historiadora começou a pesquisar “à volta dos processos da Inquisição” em Moura, pretendia tratar de outro tema em livro. Mas deparando-se com vários processos inquisitoriais dirigidos às freiras de Santa Clara de Moura, “um dos conventos que contou com mais processos”, decidiu mudar de foco.

 

“Pareceu-me interessante estudar este convento de clarissas, de que já ninguém se recorda em Moura”, observa, para explicar que nem o Centro Infantil instalado no lugar do antigo convento recebe o nome de Santa Clara.

 

É o Centro Infantil Nossa Senhora do Carmo, padroeira do concelho. “A história e o tempo são um pouco cruéis, por vezes. Moura teve um convento de Clarissas com uma importância notável em todos os aspetos, porque era dono de um património muito relevante no concelho, com um número de propriedades rurais e urbanas muito expressivo e, hoje, não existe sequer uma imagem de Santa Clara no município.”

 

Por isso, Marisa Bacalhau diz ser fundamental o trabalho do historiador local: “no estudo da história dos lugares, as histórias que as escolas não contemplam, porque permite que estes temas não sejam esquecidos.” Todos os livros que escreveu são nesta perspetiva, em aspetos muito diversos. No caso do Convento de Santa Clara de Moura – Do esplendor à extinção, o papel da Câmara “foi fundamental, porque apoiou a edição e tornou possível a sua publicação”.

 

Depois de escolher o tema, teve “alguns momentos de desânimo, porque não encontrava a documentação que esperava, ou tinha outras dificuldades”, mas assegura que houve sempre “qualquer coisa” que a impulsionava a continuar.

 

Encontrou o espólio documental disperso pela Torre do Tombo, em Lisboa, e pelos Arquivos Distritais de Beja e Évora. Leu milhares de manuscritos e cruzou informação compilada, para uma obra completa que inclui uma listagem das abadessas do mosteiro, de 1580 a 1859, e das professas, de 1582 a 1827, assim como das propriedades e herdades do convento, entre outras coisas.

 

Mas que é, sobretudo, uma narrativa cativante deste “universo feminino em clausura”, por mais de dois séculos.

 

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AS LIGAÇÕES DO NOVO CONVENTO AOS CRISTÃOS-NOVOS 

Na sua fundação, o Convento de Santa Clara de Moura não pertenceu à Ordem Franciscana, tinha outra designação, e a sua localização original também foi alterada, refere a autora, que também o escreve na introdução do livro.

 

Era uma comunidade conventual de freiras Bernardas de Cister, que recorriam a esmolas para fazer face a tempos difíceis de epidemias que assolavam o mosteiro ciclicamente, deixando-o vazio de freiras. “Em 1580, a última grande epidemia volta a deixar o convento deserto.”

 

A mudança para onde hoje está o infantário aconteceu em 1610, tendo sido motivada não só por se considerar o antigo espaço “um sítio doentio, mas também por vontade e necessidade de expansão do convento”. Esclarece: “A Ordem de Malta tinha várias propriedades no local e nunca permitiu essa expansão.”

 

Marisa Bacalhau conta que o dia da mudança do convento velho para o novo, de um extremo para o outro da vila a 16 de setembro de 1610, “foi visto como milagroso”. O acontecimento, que foi acompanhado de uma multidão de gente eclesiástica e secular, é relatado “com fervor” por Frei António da Porciúncula, em 1694, nas Memórias do Convento de Santa Clara de Moura.

 

Escreve que o dia tinha estado abrasador, mas que no momento da mudança “o tempo mudou miraculosamente, tendo refrescado”. “Caíram umas pingas de água, o suficiente para as freiras fazerem o caminho de três horas de forma mais confortável, havendo inclusivamente um perfume no ar”, resume a historiadora, que leu a descrição de Frei António da Porciúncula na apresentação do livro no Centro Infantil, no dia em que se celebravam 412 anos da mudança.

 

E precisamente às seis da tarde, hora em que as freiras chegaram ao seu novo convento. Um pormenor que diz não ter sido programado. 

 

A pesquisa à volta dos processos da Inquisição permitiu saber que as habitantes do novo convento eram descendentes de cristãos-novos, sendo que na história do convento de Santa Clara há “muita ligação” com os convertidos ao cristianismo.

 

“O único benfeitor, patrocinador da Igreja do Convento, foi um cristão-novo: Nicolau Lopes, ourives do ouro, que vai pedir em troca para lá ser sepultado e que a sobrinha ingresse no convento.”

 

A VIDA EM CLAUSURA, NUM ESPAÇO DE ABUDÂNCIA 

“Este universo feminino era de alguma opulência, de freiras que se faziam acompanhar, não só do enxoval, como das criadas pessoais”, observa Marisa Bacalhau, lembrando que o número de celas fora do bloco central, de que ainda restam vestígios, é outro sinal de riqueza, já que era uma possibilidade exclusiva de famílias abastadas.

 

Escavações feitas nos anos 80, para ampliação do Centro Infantil, também trouxeram à luz do dia um espólio de “cerâmicas notáveis, algumas do século XVII, podendo ver-se semelhantes nas obras de Josefa de Óbidos, mas sobretudo um conjunto de vidros”, que vem reforçar o prestígio e as posses do mosteiro. 

 

Diz que outro episódio que mostra uma “riqueza desmedida” no Convento de Santa Clara de Moura acontece “já nos finais do século XVII”, em que a comunidade conventual “é admoestada pelo provincial da Ordem por um uso excessivo de açúcar”, usado na confeção de doces.

 

Os “mimos, assim se chamavam aos agrados”, elucida a historiadora, “eram dados a quem se devia obrigações”. No caso, “o cirurgião, o padre confessor”. Os documentos revelam que “o provincial da Ordem de São Francisco até lhe dá alternativas de ofertas.” Ao padre confessor, seria papel.

 

Mas a riqueza não era tudo. “Analisando o livro de óbitos do convento, podemos perceber que era difícil viver em clausura. Que a maior parte das freiras morria de problemas respiratórios ou de melancolia, ou seja, depressão”, adianta.

 

Só a partir dos finais do século XVIII é que vai ser possível ausentarem-se do convento para tratamentos, sendo que as licenças tinham a duração de um ano. No livro, a autora descreve o caso excecional de Madre Maria Perigrina que saiu da clausura “’para usar dos remédios para Lisboa’” em 1852, e que só regressou dezassete anos e sete meses depois.

 

Facto que terá levado a Ordem dos Franciscanos, “que as orientavam espiritualmente e que, de alguma forma, as fiscalizavam”, a pedir contas à Abadessa. A justificação não é conhecida. A primeira vez que uma clarissa foi autorizada a ausentar-se do Convento foi em 1799, para “poder ir aos banhos das Caldas”. 

 

Marisa Bacalhau dá conta do registo mais antigo da “utilização das águas de Moura para tratamentos termais” também por esta altura. Em matéria de água, refere ainda que o seu transporte para utilização diária constituía uma despesa normal dos mosteiros, a que as clarissas eram poupadas, já que “tinham vários poços no interior do convento, um até dentro do refeitório”.

 

OS PERÍODOS DE CRISES MAIORES 

Um dos momentos mais difíceis vividos no convento resultou do terramoto de 1755, que afetou particularmente o dormitório e o refeitório, obrigando a um conjunto de obras. “Percebemos isso pelo livro de receitas e despesas, que é outra fonte documental e essencial para o estudo destas comunidades, permitindo saber o que comiam, como viviam e as rendas que tinham.”

 

Mas tendo as Dominicanas do Castelo sido ainda mais afetadas pelo sismo, coube às Clarissas acolhê-las enquanto as obras no mosteiro das primeiras decorriam.

 

Outro momento de crise, este muito maior, dá-se no âmbito das Invasões Francesas (1807/1813). Esclarece que os franceses “eram muito temidos”, havendo instruções para a população de Moura em geral fugir para os campos, face a um ataque.

 

Em janeiro de 1811, as freiras clarissas abandonaram o convento para se refugiarem na casa de familiares, e só regressaram a 18 de julho de 1812. “O livro de receitas e despesas diz-nos que pagaram a alguém que cuidasse do convento durante a sua ausência e, no regresso, o desentulho de uma casa. O que leva a crer ser a divisão onde guardaram a documentação do mosteiro, que incluía o registo das propriedades.”

 

Em O Convento de Santa Clara de Moura – do esplendor à extinção, a autora reproduz as palavras escritas do padre provincial a propósito da fuga: “’ Nesses (…) dias de susto, e de revolução em que alteradas pela necessidade as leis da Igreja, e os costumes do religioso christianismo as portas do claustro se abrirão e franqueavão afim de innocentes preciosas victimas escapassem à morte, ao sangue e a vergonhosos insultos.’”

 

Mas o período mais negro da história do Convento de Santa Clara de Moura aconteceu muitos anos antes, em 1669, quando um número muito significativo de freiras, acusadas de práticas judaicas, responde no Tribunal da Inquisição.

 

O facto de muitas delas serem cristãs-novas “tem aqui um peso significativo, pois era mais um elemento de suspeição que pesava sobre elas, agravado pelas denúncias que aconteciam”, aponta Marisa Bacalhau.

 

Num ambiente de enorme desconforto, receio e desconfiança, as clarissas denunciavam-se umas às outras e às próprias famílias, e estas denunciavam-nas, havendo ainda “um cruzamento de denúncias” com dominicanas, em cujo convento a situação foi “residual”.

 

“O Convento de Santa Clara foi excecional nesse aspeto”, comenta. Dos processos tratados pela Inquisição de Évora relativos a membros de ordens religiosas femininas, estava em segundo lugar, logo atrás do Convento de Santa Clara de Beja.  

 

A ÚLTIMA FREIRA DE SANTA CLARA DE MOURA

Prossegue explicando que nem sempre é possível saber “o retorno” das sentenças, “provavelmente porque os papéis se perderam”, mas que a maioria das freiras julgadas no Tribunal da Inquisição foi readmitida.

 

“No entanto, ficaram privadas de ter um cargo importante dentro do convento, tendo também de passar a fazer as tarefas humildes que, normalmente, estavam reservadas às criadas ou às freiras professas, que pagavam um dote menor. Em muitos casos nem podiam votar na eleição para a Abadessa. Ficavam ‘privadas de voz’.”

 

Se numa fase inicial a comunidade conventual é marcada pela descendência de cristãos-novos, a partir dos finais do século XVII e inícios do século XVIII, “as freiras já são descendentes de pessoas com cargos militares importantes” no Quartel de Moura.

 

A historiadora explica que o concelho teve um papel “determinante” depois das Guerras da Restauração, pelo que contaram com um novo quartel a partir do primeiro quartel do século XVIII.

 

Com a extinção das ordens religiosas em 1834, que leva ao encerramento dos conventos (a dissolução dos femininos estava dependente da morte da última freira), a última clarissa no Convento de Moura é convidada a sair em 1893.

 

“Estava muito velha e o mosteiro estava em ruínas. Convenceram-na a ir para casa de uns familiares que moravam perto do convento”, esclarece Marisa Bacalhau, dando conta das palavras da Abadessa Maria Margarida Segurado, citada por Tomás Lino d’ Assunção no livro As Últimas Freiras, quando na sua função de percorrer os conventos extintos para angariar a documentação esteve no de Santa Clara de Moura: “’Espero em Deus, que de mim e do meu tempo não haja página que não se possa ler”.  A prioresa morreu três anos depois, em 1896.

 

O FASCÍNIO PELA HISTÓRIA LOCAL 

Marisa Bacalhau nasceu em Beja e viveu até aos nove anos em Pias, altura em que a família se mudou para Moura, terra-natal da mãe. Desde então, viveu sempre na cidade raiana. Fez a licenciatura na Universidade de Évora, com apenas 20 anos, e um mestrado em Museologia, em Lisboa.

 

Recentemente terminou uma pós-graduação em Património Imaterial, que diz ser uma área que também lhe “interessa muito”. “Aquilo que me encanta, de facto, é descobrir estes pormenores da História Local e falar sobre as coisas que não estão escritas ainda.

 

Pesquisar, fazer o cruzamento de dados e perceber as histórias que vão ficando esquecidas”, observa. Neste sentido publicou um livro sobre o azeite, um e-book em coautoria com um colega sobre o Foral Manuelino atribuído a Moura, editou na Fronteira do Caos sobre a História Militar de Moura o título Gaturamo – Os Regimento da Europa na Reconquista do Rio Grande do Sul, e um livro infantil sobre Santo Aleixo da Restauração.

 

É historiadora na Câmara Municipal de Moura há quase 25 anos, cargo que engloba a investigação local, sendo ainda responsável pelas exposições dos museus do concelho.

 

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