Diário do Alentejo

Fossos pré-históricos em Serpa

04 de novembro 2022 - 09:30
Construções, com cerca de 5000 anos, revelam complexidade social das comunidades
Foto | Era - ArqueologiaFoto | Era - Arqueologia

Perto da cidade de Serpa, foram recentemente identificados dois recintos de fossos pré-históricos, com uma idade presumível de cerca de cinco mil anos. Um destes recintos constitui- -se, pela área que abrange, como um dos maiores deste tipo, descobertos até agora em Portugal. António Carlos Valera, arqueólogo da área de investigação da empresa responsável pelos achados, sublinha a importância de os trabalhos continuarem, revelando, contudo, face ao plantio agrícola, a incerteza dessa possibilidade.

 

Texto José Serrano

 

Foram recentemente descobertos, no concelho de Serpa, em zona rural não muito distante da cidade, dois recintos de fossos pré-históricos, que se pensa terem entre 4500 e 5000 anos, elucida António Carlos Valera, arqueólogo da ERA-Arqueologia, entidade responsável, em colaboração com a Câmara Municipal de Serpa, do projeto de prospeção geofísica – para obtenção de plantas do subsolo – que permitiu a descoberta.

 

O achado é constituído por um fosso mais pequeno, com cerca de 150 metros de diâmetro e um outro, um dos maiores recintos deste tipo conhecidos em território português, que abrangerá, segundo a projeção feita, uma área “muito ampla, à volta dos 20 hectares”, apresentando, ambos, tipologias particulares, esclarece o arqueólogo: “apesar destas construções aparecerem um pouco por toda a Península Ibérica, estes recintos, apresentam, aqui, características muito típicas”, semelhantes a alguns dos já referenciados no Alentejo, “nomeadamente na bacia do Guadiana e, em particular, no concelho de Serpa”.

 

Características peculiares que se relacionam com o desenho da planta dos recintos, uma vez que “os fossos são feitos de uma forma sinuosa, de uma forma ondulada muito padronizada, que parecem dar, ao seu conjunto, um aspeto de flor”. Um desenho arquitetónico que os investigadores acreditam ter, “inclusivamente, ligações cosmológicas”, pelas pistas fornecidas – “o número de lóbulos e a orientação das entradas aos solstícios são indicadores de que há uma espécie de prescrições na sua construção”.

 

Estes recintos, com fossos, que nas últimas duas décadas têm vindo a ser, amiúde, revelados, como consequência do desenvolvimento de projetos de investigação, apresentam uma grande concentração no interior alentejano, sobretudo nos distritos de Évora e Beja, e maioritariamente no concelho de Serpa, sendo cientificamente interpretados como “centros cerimoniais de agregação de comunidades, que ali se deslocariam, em determinadas partes do ano – uma espécie de locais de romaria, com uma periodicidade de utilização muito evidenciada, demonstrando que estes sítios tiveram uma vida muito dinâmica”.

 

Estes indícios provêm da evidência, nestes locais, de práticas de metalurgia, de tecelagem, de cerimónias funerárias, “uma vez que muitos dos fossos apresentam ossos humanos”, mas também da realização de outras atividades, “inclusivamente de grandes festins, porque nestes sítios, consumiam-se grandes quantidades de animais, em práticas de comensalidade”.

 

Em muitos destes recintos, no Alentejo, aparecem também “objetos trabalhados sob materiais exóticos, como marfim e outros, que vêm de longe – ainda não os encontrámos nos recintos de Serpa, porque eles não estão escavados, são só prospeções de superfície –, do Norte de África, do centro da Península Ibérica”, significando que esses sítios “estão integrados em movimentos de circulação de determinados objetos e matérias-primas, importantes para estas comunidades, que revelam a sua complexidade e integração em redes de larga escala”.

 

Desta forma, crê-se que as populações que nestes sítios viviam ou que aqui se deslocavam se encontravam “num crescendo de complexificação social, revelando estes locais, “claramente, que estamos perante sociedades que estão progressivamente a investir muito em aspetos de monumentalidade e de exibição e onde se nota um certo conflito entre uma organização social ainda fortemente coletiva e de tendência igualitária, mas onde já estão a surgir desigualdades sociais”, com esses atritos – sociais, políticos, religiosos – a serem são também “negociados nestes recintos”.

 

Assim, António Carlos Valera, em contraponto a uma noção preconcebida, sublinha: “existe a ideia de que estas populações pré-históricas seriam pouco evoluídas, mas é precisamente o contrário, mostrando, de facto, uma grande complexidade social. Isso é muito visível, sobretudo nos grandes recintos”, onde existiu “uma capacidade de agregação, para a realização de trabalho comunitário, muito grande”, pois muitos destes fossos “chegam a ter quatro metros de profundidade, por oito de largura, com perímetros que ultrapassam um quilómetro. Isto implica uma mobilização e uma capacidade de organização enorme”.

 

Relativamente à possibilidade de continuidade desta investigação arqueológica, nomeadamente no local de maiores dimensões, que se denomina como sítio arqueológico São Brás 3, o arqueólogo esclarece: “a informação que tenho é que há uma intenção de plantar este local, talvez com olival ou amendoal, e, por isso, não sei se será possível realizar algum trabalho mais, antes do plantio. Neste momento, só haverá mais trabalhos, ali, se a tutela da arqueologia os exigir”.

 

E conclui, sublinhando: “com certeza que seria muito importante prosseguir os trabalhos arqueológicos, isso deveria constituir-se como uma inerência a qualquer destes sítios – quer isto dizer que, antes de serem plantados, devia ser feita, em cada um deles, pelo menos, a prospeção geofísica para a elaboração da planta, para que esse procedimento fique preservado. Mas a prática, infelizmente, não é essa”.

 

 

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