Diário do Alentejo

Serpa dá “murro na mesa” por incapacidade de acolher mais migrantes timorenses

30 de setembro 2022 - 09:30
Autarquia exige que Governo assuma responsabilidades no acolhimento. ACM diz que identificou 376 migrantes no distrito de Beja, mas o número deve pecar por defeito
Foto | Câmara Municipal de SerpaFoto | Câmara Municipal de Serpa

Aquilo que deveria ser uma solução provisória está a tornar-se definitiva e a Câmara Municipal de Serpa diz estar a chegar ao limite e não ter capacidade para continuar a acolher os migrantes timorenses. O Alto Comissariado para as Migrações (ACM) revelou que, nos últimos meses, identificou 680 cidadãos originários de Timor-Leste, dos quais mais de metade no distrito de Beja, mas quem lida com a situação no terreno, acredita que serão muitos mais.

 

Texto Aníbal Fernandes

 

“Isto é um murro na mesa. É tempo de a nível central se tomarem decisões que permitam aos migrantes timorenses ter condições de vida dignos. Serpa está solidária com os timorenses, mas estamos a chegar aos nossos limites”. Foi desta forma que João Efigénio Palma, presidente da autarquia, apresentou o problema que se tem observado nos últimos tempos.

 

O presidente da Câmara de Serpa diz que “ciclicamente, mudam as nacionalidades dos trabalhadores sazonais que chegam para trabalhar nos campos, mas, de há uns meses a esta parte, vimos que chegavam timorenses, muitos deles sem trabalho”. O primeiro caso a necessitar de ajuda remonta a 24 de agosto, quando um grupo de três dezenas de trabalhadores se viu, de repente, a viver na rua.

 

A Segurança Social deu assistência às quatro mulheres dessa comunidade e o município acolheu os restantes no pavilhão da feira daquela cidade da Margem Esquerda. Hoje estão lá cerca de quatro dezenas de migrantes mas, segundo o presidente da Câmara, o local “não tem condições de dignidade para albergar” esta comunidade.

 

Esta situação “precisa de uma intervenção política”. Nós somos solidários, estivemos ao lado da Segurança Social para tentar” encontrar uma solução para o problema e “estaremos cá para tentar colaborar naquilo que for possível e necessário”, disse. Mas, “agora, é tempo de haver uma intervenção política e o Governo tem de se compenetrar do grande problema, não só em Serpa, mas que se vive em todo o Alentejo com a imigração”, concluiu.

 

O autarca diz que “por mais duro que seja dizê-lo, não podemos receber mais ninguém”, explicando que apenas até “meados de outubro” podem manter aquelas pessoas naquele espaço”, que diz ser necessário para actividades já programadas pela câmara municipal.

 

Para alertar as autoridades, a câmara enviou, na semana passada, um ofício ao Presidente da República, ao primeiro-ministro, aos ministérios dos Negócios Estrangeiros, Administração Interna, do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, bem como aos grupos parlamentares, descrevendo a situação como “emergência social” e exigindo “uma rápida intervenção e resolução do problema”.

 

O que “era para ser uma situação provisória, passado um mês, está a transformar-se em regra”, lamenta o autarca serpense, acrescentando que, numa reunião realizada no passado dia 16, com a GNR, a Autoridade para as Condições do Trabalho, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e a Segurança Social, esta última informou não ter “capacidade de resposta” para resolver a situação tendo a câmara ficado “com o menino nos braços”.

 

Questionado, pelo “Diário do Alentejo”, sobre se as declarações do presidente Marcelo Rebelo de Sousa, em Díli, a encorajar a vinda para Portugal, podem ter espoletado esta vaga de migração, João Efigénio começou por dizer que não conhecia as declarações referidas, mas admitiu que a situação agora observada “pode ser uma consequência desse convite” o que, a confirmarem-se, “é de uma extrema gravidade. Quando convido alguém para minha casa cuido de ver se tenho condições para a receber”, acrescentando que “sendo Portugal um País de emigrantes”, nos devia “levar a ter mais cuidado com aqueles que recebemos”.

 

ACM ACOMPANHA O ACM

Em resposta por email a questões colocadas pelo “Diário do Alentejo”, diz que “está a acompanhar as situações que têm sido identificadas e a articular respostas territoriais coordenadas com várias entidades”, nomeadamente, “o Estado central, autarquias, forças de segurança, rede consular, autoridades de saúde” e proprietários rurais.

 

No distrito de Beja, estas acções, através do Centro Nacional de Apoio à Integração de Migrantes (Cnaim) de Beja, visam a “prestação de informação sobre direitos, acompanhamento da transferência para alojamento digno, apoio alimentar, apoio na obtenção de documentos ou encaminhamento para ofertas de trabalho”.

 

O ACM revelou ainda que já foram realojados em “habitação de emergência” 110 cidadãos timorenses. O mesmo organismo diz ter identificado, até agora, 680 cidadãos, dos quais 376 no distrito de Beja.

 

No entanto, João Efigénio Palma afirma que, só em Serpa, estão referenciadas “cerca de duas centenas de pessoas que correm o risco de ser despejadas das casas e não têm meios de subsistência por falta de trabalho”, acreditando que no Alentejo possam ser muitos mais do que o número apontado.

 

MÁFIAS COBRAM DOIS MIL DÓLARES

As irmãs Benedita e Maria Belo são duas das muitas migrantes que chegaram há dois meses a Serpa e que, segunda-feira, foram confrontadas com uma tentativa de despejo e com o corte de água e luz. Tinham estado a trabalhar em Santa Vitória na apanha da fruta, mas, do mês trabalhado, receberam menos de metade. Sem dinheiro para pagar o “alojamento”, o “arrendatário” tentou expulsá-las da casa.

 

“Estivemos na apanha da pera em Santa Vitória, mas agora não temos trabalho, e do tempo que trabalhámos nem tudo foi pago. Não temos como resolver o assunto “, queixou-se Benedita. As migrantes, presentes junto ao edifício da Câmara Municipal de Serpa, local onde decorreu a conferência de imprensa, contaram que tinham pago dois mil dólares para vir para Portugal “a uma agência, em Díli, com o nome de New Generation”.

 

Também presente no local, Alberto Matos, dirigente da Associação Solidariedade Emigrante (Solim), em declarações aos jornalistas, disse que em conjunto com as autarquias têm “procurado que as pessoas iniciem o seu processo de regularização para ficarem protegidos e que depois possam encontrar trabalho. Está-se a iniciar a campanha da azeitona, mas virão aí, como sempre, muitos outros migrantes, portanto não vai ser propriamente um mar de rosas”, prevê o dirigente da Solim, acrescentando que “como continua a vigorar este sistema de empreitadas, com os senhores agrários a lavarem as mãos e a ficarem com o dinheiro no bolso, a exploração vai continuar. Enquanto não se encarar de vez o uso e abuso das empreitadas e cortar a raiz e a cabeça às máfias isto vai continuar”.

 

Questionado sobre o alegado “convite” feito por Marcelo Rebelo de Sousa à emigração para Portugal, Alberto Matos disse que “quem aproveitou esse apelo e se organizou foram as máfias locais. Depois, em Portugal, há que responsabilizar os novos e velhos latifundiários, os donos da terra que são quem lucram com a exploração dos trabalhadores”, concluiu.

 

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