Diário do Alentejo

José Saúde lança livro sobre Aldeia Nova de São Bento

17 de dezembro 2021 - 10:00

Texto José Saúde

 

Nasci em Aldeia Nova de São Bento no dia 23 de novembro de 1950 e sou filho de Francisco Saúde e de Ana dos Reis Romeiro, ambos naturais da povoação. Oriundo de uma família humilde, gente que “comeu o pão que o diabo amassou”, mas cujo princípio familiar passou por me colocarem a estudar no ensino secundário, ensino este que ia para além da então trivial quarta classe, foi, de facto, o literal propósito dos meus saudosos pais, pessoas modestas, mas que oportunamente se identificaram com uma enorme solidez humana que motivou o homem que hoje sou.

 

Neste contexto, e num desafio permanente às memórias da minha aldeia, deixo escrito, neste livro, parte das raízes da minha infância e dalguns pormenores de profissões que marcaram épicas gerações, onde os mestres foram personalidades que inspiraram épocas inesquecíveis, sendo que o seu labor ficará eternamente contemplado. Para além dessas inequívocas lembranças, recordo alguns dos nossos conterrâneos que ficarão perpetuamente expostos numa montra de eloquentes e requintadas individualidades.

 

MEMÓRIAS DOS ANOS 50

Neste início de vida o tempo parecia indeterminado. Sobre a luz ténue do candeeiro da rua mais próxima, os rapazes juntavam-se para a habitual cavaqueira. A infantilidade impunha regras de cumprimento. Havia aqueles mais engraçados e que tinham jeito para engendrar as piadas, e o resto da miudagem ria. As noites de verão revelavam-se encantadoras. O luar trazia uma nova alma. Via-se a passagem dos satélites. Visualizava-se a preceito a estrada de Santiago; discutia-se o nome das estrelas; os seus significados; a estrela polar, lá do alto, arrogava-se como uma das mais brilhantes da constelação solar; a ursa maior e a ursa menor desvinculavam-se das restantes.

 

Comentava-se a evolução do mundo: “A dois mil chegarás e de dois mil não passarás”. Nos dizeres populares vivia-se sob a égide das profecias de Bandarra. Uma curiosidade na altura. As suas profecias ditavam o rumo do futuro, dizia-se. Dessas profecias ressaltavam outros princípios que a miudagem bebia com toda a sua ingenuidade. “As estradas um dia vestir-se-ão de preto”. E a verdade é que o preto significava o alcatrão que, mais tarde, veio dar consistência às redes viárias. “As mulheres, um dia, morrerão agarradas às árvores”. E a curiosidade das dicas da noite prosseguiam. 

 

As mulheres e os homens faziam rancho a apanhar o fresco da noite. De vez em quando lá passava um grupo de rapazes que se entregava à brincadeira. Ficava a curiosidade. “São os filhos da vizinha Ana, o da Maria, o da Antónia” e a dúvida ficava quando a correria louca não deixava ver quem era o quarto elemento. Tudo era motivo de conversa. Aqueles corpos, já idosos, revelavam uma ancestral sabedoria popular. Contavam-se anedotas e vociferavam-se quadras. Outras vezes, advinhas para puxar pela cabeça daqueles que se deparavam com o pressuposto enigma. Os miúdos achavam graça e acompanhavam as longas noites de verão naqueles afamados serões de aldeia.

 

Os moços, no jogo do pau da lua, e sempre em correria, tentavam alcançar a “mãe” (local a atingir) sem que os outros que ficavam a guardar o sítio de tal se apercebessem. Sabia bem ficar no outro lado brincadeira, ou seja, daqueles que procuravam o esconderijo e sorrateiramente se aproximavam do alvo sem serem vistos. Quando tal era conseguido, lá surgia um imenso grito que rompia o silêncio da noite: “Mãe!” Batalha ultrapassada… pensava a miudagem.

 

De inverno, tudo se complicava. A chuva não dava azo à brincadeira. A idade não permitia aqueles devaneios. Metidos em casa, os pequenos dedicavam-se a brincadeiras caseiras. Uma tábua e quatro tampas de garrafa de cerveja e aí estava um carrinho feito “à maneira”. Ou, uma roda de arame acompanhada de um gancho afigurava-se como um pequeno passatempo. Havia, ainda, quem se entretivesse com as chamadas carretas, nome dado a um caixote de sabão, com uma roda de charrua na frente, dois pedaços de madeira na retaguarda e aí estava um carro de carga para pequenos afazeres. Nesses tempos, o precioso utensílio dava para a pequenada brincar além da sua utilização no transporte de eventuais materiais para casa. A rapaziada, com os bólides em movimento, divertia-se à grande.

 

Ao lado, mesmo na porta seguinte, o menino rico, filho de um afamado lavrador, acicatava a rapaziada mais humilde com um cobiçado triciclo, última novidade, oferta do seu pai no dia em que o jovenzinho completava mais um ano de existência. Constatava-se a luta de classes no seu auge. O mais simples brinquedo simbolizava o extrato social de uma miudagem que queria, somente, liberdade nas brincadeiras.

 

Por seu turno, o menino pobre satisfazia o seu desejo brincando com pequenas coisas de somenos importância. Brinquedos de ocasião ou pequenas lembranças compradas na feira anual de setembro. Uma camioneta, com cabine e rodas, fazia, por exemplo, as delícias de uma criança cujas carências monetárias eram notórias.

 

Na época de Natal, faziam-se os presépios. Os rapazes iam ao musgo das árvores e preparavam o seu presépio. Uma prata formava o lago. E lá estavam os Reis Magos, a Sagrada Família, os pastores com os seus rebanhos, o moinho, o regato de água e o algodão para simular a queda de neve.

 

As noites invernosas não eram nada convidativas. A família reunia-se em volta da lareira. Um lume feito no chão aconchegava a totalidade dos elementos familiares. Depois lá vinham as histórias mirabolantes contadas para a imaginação das crianças tentarem desdenhar. Noutros casos, surgia uma anedota ou uma brincadeira de ocasião. Pelo meio do imprevisto, e de uma amena cavaqueira, a chuva batia compulsivamente num constrangido teto feito de telhas de barro assentes em canas vindas de um barranco próximo, ou de um local húmido das redondezas do povoado. Valia o calor emanado das labaredas e o sempre sonhado colo da mãe. E quando as noitadas se prolongavam para horas que iam para além do comum, eu, docilmente, adormecia no regaço de minha mãe.   

 

Meu pai era um homem do campo. Conhecia os adágios populares. Vivia permanentemente na sombra dos ditos que diziam comandar a lida dos trabalhos futuros que a própria natureza decidia. Tudo em prol da labuta seguinte. Os sinais emanados da lua, ou do astro, assim como as mudanças do vento, ditavam afazeres futuros. O cheiro do enxofre trazido pelo vento do minério arrancado às entranhas da terra proveniente da Mina de São Domingos, aglomerado populacional próximo da aldeia, trazia odores que intrinsecamente se associavam às eventuais calamidades, a chuva que estava para chegar, ou a temperatura no quente verão que ia subir. Conhecer os sinais do tempo era uma prioridade para o homem desenhar as suas tarefas seguintes. 

 

O CONTRABANDO, A EMIGRAÇÃO E O UIVAR DOS LOBOS

Nos anos 50, vivia-se sob o espetro do fim recente da II Guerra mundial ocorrida em meados da década de 40, e uma outra, de 30, com a marca de civil em solo espanhol. Aldeia Nova, localidade vizinha com a Espanha, tinha bem presente o tempo da fome, da miséria, dos refugiados, das perseguições e, sobretudo, da escassez de bens para uma alimentação cabal para toda uma população que rogava, apenas, paz. Os estrondos ouvidos à distância deixavam as pessoas assustadas, lembravam os mais velhos. Os franquistas (apoiantes de Franco) não davam sossego. A Espanha estava dividida. A tropa, colocada ao longo da fronteira, o meu pai, em 1936, foi um desses militares destinados para o cumprimento de tal missão, bem como outras forças militarizadas, procuravam suster o êxodo dos refugiados. Portugal, como país neutro, colocou-se à margem das desavenças internacionais. Comentava-se a desgraça, mas longe da realidade factual.

 

Era criança, mas, de vez em quando, ouvia o sussurrar dos mais velhos. Falava-se que beltrano trabalhava no contrabando e o sicrano fora apanhado com uma “carga às costas”. “Foi julgado e está preso”, comentava-se em voz baixa. “O que será feito daquela família?” - replicavam alguns. “O mais pequenino tem apenas dois anos”, afirmava um velhote com a voz embargada pela idade e depois de engolido mais um copo de aguardente na taberna.

 

Na aldeia, os conteúdos mercantis vindos de Espanha acicatavam o gosto pela sua compra. Tudo às escondidas. Depois da roupa vestida ou o calçado enfiado no pé, ou seja, já usados, não havia lei que impedisse tal modernice. As calças de ganga ou as de bombazina, para fazer jus a um inverno rígido, eram as mais apetecíveis. A seguir, as botas borracheiras para resguardarem pés descalços, evitavam eventuais contágios. Claro que as novidades não se ficavam por aqui. Os rebuçados, os chocolates, entre outros bens comestíveis, faziam parte da ementa de quem procurava os produtos com a chancela espanhola.

 

Ia-se a casa do contrabandista pela surdina. Falava-se pela calada sobre os produtos a adquirir. Mandava-se, esporadicamente, um recado para o homem, sempre honesto, para uma visita aos conteúdos disponíveis. Tudo era feito mediante as regras propostas. Por norma, as coisas corriam de feição. Os bufos, porque os havia, e muitos, eram ultrapassados nas suas malfadadas intenções.

 

No povoado, o lobo impunha respeito. Falava-se dos ataques aos rebanhos. Os medos dos pastores. A noite trazia outros desafios. Arrumar o rebanho nas redes era prioritário. Os cães, à solta, eram prestigiados guardas de honra. Mesmo assim, os ataques dos lobos eram frequentes. “Deram cabo do rebanho de fulano tal…”, comentava-se nas tabernas da aldeia. Os mais famintos, atentos à conversa, demandavam campo fora em busca de restos de cordeiros que os lobos tinham deixado no terreno. Alguns dos animais mortos não eram consumidos na totalidade. Havia casos em que os animais ficavam apenas moribundos, sendo pressuposto que o seu fim se apresentava fatal. A fome obrigava os destemidos a um leque de aventuras infindáveis. Um ensopado de borrego, embora descurando a forma como fora arranjado, constituía uma refeição farta para homens sem medo.

 

Por outro lado, a aldeia era parca de luminosidade. Nas décadas de 1920, 1930 ou de 1940, por exemplo, sustentava-se que os lobos desciam ao povoado para se alimentarem dos cascos das bestas deixados no terreiro do ferrador, homem que ferrava os animais, sendo usual aperfeiçoar o casco das patas para que a ferradura assentasse com uma maior exatidão. Falava-se das frequentes presenças dos ditos animais esfomeados. O povo refugiava-se no medo! Na insegurança! Ficava em casa esperando as novidades noturnas que teriam lugar no dia seguinte. Tanto mais que na época era usual uma visita madrugadora à taberna para os mais idosos “matarem o bicho”, um termo que assentava no velho costume de beber um copo de aguardente em jejum sendo, muitas das vezes, acompanhado de um figo passado, um hábito que, entretanto, se esfumou no tempo. Aliás, a exemplo da velha taberna da nossa aldeia.

 

A fuga à mediocridade, constatada no quotidiano aldeão, primava, a espaços, por aventuras impensáveis. O ser emigrante geria-se pela honorabilidade dos candidatos. O sistema impingia condições. Perante as restrições, o homem partia a salto. Aventurava-se. Desafiava cursos de água, contratempos físicos deparados, esquivava-se às autoridades, viajava com documentos falsos, ou sem eles, ultrapassava alcateias esfomeadas; caminhava por trilhos apertados; desafiava as intempéries do tempo; a escuridão da noite; os vales, detentores de constantes imprevistos, eram palmilhados em silêncio; nas casas, isoladas nas abas da montanha, lá estava o velho passador (homem “feito” com o esquema) para a preciosa ajuda ao imperturbável aventureiro; depois, o confronto com uma língua totalmente desconhecida e a procura de um emprego, ainda que este fosse alcançado por uma via que camuflava a identidade entretanto branqueada. Um pesadelo para quem partia e para quem ficava!

 

UMA NOITE INFERNAL

A noite, quente, parecia calma, mas eis que num instante tudo se alterou. No silêncio da escuridão escondiam-se sombras de gentes que se viam perseguidos pelas forças policiais do Estado Novo.

Da taberna do Largo do Algés, agora Largo da Batalha, as vozes que vinham daquelas bandas há muito se haviam calado. Amanhã era mais um dia de trabalho. “Deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer”, dizia o povo. E tinha razão. Os ditos populares construíam o universo de uma depauperada sociedade. 

 

Estávamos em meados do mês de julho de 1958. Tinha sete anos de idade. O mundo que me rodeava já não era totalmente alheio. Por volta das 23:00 horas ouviram-se alguns gritos, associados a tiros, que rompiam o silêncio de uma noitada que se tornaria infernal. Correrias loucas de gentes em desespero, o trotear de cavalos, mais tarde o barulho ensurdecedor de uma velha camioneta que, entretanto, havia sido chamada ao local, e um frenesim de homens desesperados ditavam o fim de um dia que se vislumbrava sereno.

 

Regressando ao rescaldo da noite, o balanço foi na verdade conturbado. Comentava-se que a guarda republicana tinha feito detenções, outros lograram fugir, existindo a morte de um dos cavalos que tinham ido de Vale de Vargo, posto que, à época, detinha as forças da ordem não apeadas.

 

A morte do cavalo, comentavam as pessoas, ficou a dever-se a um pressuposto tiro de um agente que, inadvertidamente, teria disparado a arma em direção contrária ao objetivo. A intenção do homem passava por dar um tiro para o ar, sendo que a arma se disparou contra o animal. Um percalço que levou a população a tecer comentários nada abonatórios, ainda que a mensagem posta a circular por uma franja de pessoas passasse por ilibar o militar, colocando culpas no povo. A morte do quadrúpede tinha sido obra de um desconhecido, assegurava, entrementes, fonte oficial.

 

Mas, a força da razão sobrepôs-se à notícia posta a circular e, no momento da verdade, a população julgou consoante a veracidade dos factos constatados. Ficou provado, rezava o povo aldeão, que o opulento equídeo morrera às mãos do seu tratador, não obstante a sua inequívoca inocência. Talvez o motivo da reação se ficasse a dever ao burburinho da ocasião, faltando, quiçá, a efetiva razão do momento.

 

O regime do Estado Novo assumia-se determinante. As forças repressivas palmilhavam caminhos sempre impensáveis. Os informadores proliferavam. As rusgas da polícia do estado, praticadas pelos seus fiéis agentes a casas particulares, cafés, sociedades, tabernas, barbearias, ou outros sítios onde normalmente o pessoal se juntava, eram comuns. De vez em quando, lá vinha a triste missiva da prisão de fulano. “É um homem bom”, confessava o povo. “Afinal o que lhe deu para andar metido nessas coisas da política?”, interrogavam-se outros. “Foi levado pela conversa de um amigo”, retorquia o velho companheiro com quem mantinha momentos de confiança apurada.

 

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