Diário do Alentejo

João Mário Caldeira: "Quem escreve pena sempre um bocado"

02 de dezembro 2021 - 19:30
Foto | José SerranoFoto | José Serrano

João Mário Caldeira, autor da obra literária “Sabina e os Mistérios da Vida – O Alentejo entre as Tradições e a Mudança” apresentado no dia 20 de Novembro na Biblioteca  Municipal Abade Correia da Serra, recorda em entrevista ao Diário do Alentejo as memórias da sua infância, a censura na escrita antes do 25 de Abril e a sua paixão pelo Alentejo.

 

Texto José Serrano

 

Nasceu, há 77 anos, em Santo Aleixo da Restauração, concelho de Moura. Quais as suas mais antigas recordações?

Lembro-me perfeitamente da minha avó paterna, que era professora primária em Santo Aleixo da Restauração, ter-me ao colo, teria eu quatro, cinco anos. É a recordação mais antiga que tenho. De vez em quando lembro-me dessa minha avó, Engrácia Maria da Silva.

 

E da juventude, o que recorda?

Tive uma infância magnífica. O meu pai era comerciante e a minha mãe era filha de comerciante. Tinham algumas terras, algumas possibilidades. Era gente que não era rica mas era remediada, o que permitia termos uma vida um bocado diferente da dos meus companheiros de escola, filhos de uma miséria enorme, descalços, mal vestidos e mal alimentados. Eram uns tempos terríveis. Eu nunca passei fome, mas não tive uma vida desafogada.

 

O que significava nascer alentejano, nessa altura?

Alentejano, português – era uma vida de absolutas dificuldades, de grandes problemas. Eu admiro muito os meus companheiros de escola, e outros com quem brincava, que viviam o que nós, hoje, poderíamos não ser capazes de suportar. Passavam um frio enorme, descalços, com calças só até ao joelho, uns suspensórios e uma camisa. Absolutamente mais nada. E a alimentação era o mínimo. Essas crianças estavam sempre desejosas de comer qualquer coisa. Uma peça de fruta era uma refeição.

 

Como é que essa pobreza se refletia no aproveitamento escolar?

Essa crianças, frequentemente, tinham um rendimento escolar superior ao meu, superior a muitos dos que comiam bem. Pode parecer uma incongruência, mas é verdade. Na matemática, várias vezes copiei as contas do meu colega de carteira, descalço e mal vestido.

 

Quando foi a primeira vez que abalou da sua terra?

Fui estudar para a Escola do Magistério Primário de Beja, tinha 16 anos. Tirei o curso e comecei a exercer. Passado um ano e meio chamaram-me para a tropa. Cumpri o serviço militar em Portugal, no tempo da guerra, em Évora. Depois da tropa, onde tirei o sétimo ano, fui para a Universidade de Lisboa e licenciei-me em História. Desde aí, e até hoje, nunca mais deixei o ensino.

 

De onde lhe veio a necessidade de escrever histórias?

O meu pai escrevia, sobretudo poesia, chegou a publicar um livro. Tinha uma capacidade de domínio da língua portuguesa absolutamente incrível, tendo só a quinta classe. Simplesmente, era filho de professora, sempre esteve em contacto com os livros, e o meu avô paterno era um homem também ligado á escrita e à leitura, apesar de ser comerciante. Eu e o meu irmão estivemos, há pouco tempo, a passar a pente fino estantes e estantes de escritos do nosso pai.

 

As influências familiares para se dedicar à escrita eram muitas e vinham de longe…

Eu e o meu irmão fomos criados com o meu pai sempre a incentivar-nos para a leitura e para a escrita, às vezes até nos dava temas. Foi assim que comecei e nunca mais fui capaz de deixar a paixão de escrever. Ainda hoje é das primeiras coisas que faço, quando acordo, nem que seja cinco, dez minutos.

 

O sentimento do ato de escrever, de criar, é inevitavelmente prazeroso ou, por vezes, implica penar?

Isto da escrita é assim: quem escreve pena sempre um bocado. Nós somos “solicitados” a escrever e quando apanhamos um filão, algo que estávamos à espera de encontrar e que nos impele a continuar, é mais difícil largar. É um chamamento. A gente até poderá querer fazer outra coisa, mas acaba por aparecer essa necessidade da escrita. E nem sempre se avança – apaga-se, recua-se. Isso, de certo modo, acaba por ser incómodo. Por vezes, a minha mulher até me chama à atenção: “Então agora que vamos sair é que está a escrever?”…

 

Antes do 25 de Abril já era colaborador dos jornais “Diário do Alentejo” e “Diário de Lisboa”. Os seus escritos chegaram a ser censurados?

O “lápis azul” cortou-me muita coisa. Cheguei a enviar o mesmo artigo para o “Diário de Lisboa” e para o “Diário do Alentejo” e, curiosamente, os cortes eram diferentes. Cortavam sobretudo quando dávamos uns “toques” em coisas que desagradavam ao Governo, em termos políticos. Por isso é que muitos de nós tínhamos o nome na PIDE – eles conheciam toda a gente. Os homens da minha idade passaram por um período…era incrível um indivíduo estar debaixo daquela batuta, sempre com a espada de Dâmocles por cima do pescoço. Só não se ia parar às prisões se não calhasse…

 

A possibilidade de ser alvo da censura política desafiava-o a encontrar outros caminhos para exercitar esse ato de liberdade, obrigando-o a escrever nas entrelinhas?

Para se dizerem certas coisas tinham de se utilizar um certo tipo de palavras. Até porque os censores eram, maioritariamente, homens com uma cultura básica que, muitas vezes, podiam ser driblados.

 

Considera que essa sede de liberdade, que permite o sonho, é uma característica indispensável a um bom escritor?

O escritor, normalmente, critica o estabelecido. Mas durante o governo salazarista, houve gente que até escrevia bem, coisas com interesse, que nunca molestou o sistema. O que me parece é que o incentivo à crítica, daquilo que achamos que está mal, é importante para que um indivíduo possa escrever. É um desafio, disso não tenho dúvidas.

 

Tem usualmente uma rotina de escrita comum a todos os livros que escreve ou cada um pede preceitos diferentes?

Uma das coisas que não dispenso é sair para comprar o jornal, depois de tomar o pequeno-almoço, e lê-lo na esplanada. Para escrever não tenho rotina nenhuma, sou contra as rotinas. É conforme vão aparecendo as ideias, aquela veneta de escrever…. Mas normalmente vou aproveitando bocados da manhã, o período a seguir ao almoço – às vezes até à hora de jantar. À noite leio.

 

Continua a ser professor, atualmente nas escolas seniores de Serpa e Moura. Como tem sido essa experiência?

Já sou professor, voluntário, da Universidade Sénior de Moura há 14 anos e há 12 na Academia Sénior de Serpa. Tem sido, provavelmente, a experiência mais gratificante, enquanto professor. O que verifico é que é mais difícil tratar com jovens do que com pessoas da minha idade, sedentas de ouvir. A maioria destes alunos lecionou a História que se dava no tempo do Salazar – as dinastias, o Estado Novo… agora, quando a gente começa a abrir perspetivas em relação a determinados assuntos, esta gente da minha idade fica muito interessada. São muito colaborantes e eu sinto-me muito acompanhado, incentivado. É como pôr a cereja em cima do bolo da minha vida de professor. Sinto-me bem, muito bem.

 

As histórias dos seus livros têm muitas vezes o Alentejo como palco. De que forma a sua condição de alentejano tem moldado a sua escrita?

Quando começo a escrever é, evidentemente, este mundo onde eu nasci, onde tenho vivido, que sobressai. Às vezes acontece-me querer “atirar” o personagem principal da história para longe. E ele vai para longe, porque eu o atiro para lá. No romance [“Sem Chão”] anterior a este atirei-o para África. Passadas 20 ou 30 páginas começou a chegar aqui. A protagonista deste novo livro [“Sabina e os Mistérios da Vida”] atirei-a para Braga, fez lá parte da vida, mas foi aqui que lhe ficou o coração. Para se escrever com sentimento tem que ser sobre o sítio que se conhece melhor, onde a afetividade está. Por mais que eu queira atirar com as personagens para longe é aqui que, realmente, elas acabam por chegar. Para se escrever com pormenor têm que se ter vivido as coisas.

 

Como alentejano dedicado que é, que futuro antevê para esta região?

O Alentejo tem sido desprezado pelos Governos, pela política. A terra é muita mas nós somos poucos, assim como os votos. Raros os políticos que são alentejanos (e quando são puxam ali mais para Évora) e todos estes cantos para aqui, periféricos, estão desprotegidos. Não estou a ver, pelo menos no meu horizonte, grande desenvolvimento para o Alentejo. Aqui vive-se bem, mas vive bem quem tem emprego, quem tem posses. Caso contrário as pessoas têm de desarvorar daqui. O Alentejo está despovoado porque não tem capacidade de reter as pessoas. E os naturais, com pena, vão abandonando esta região. O futuro que eu vejo é um bocado sombrio.

 

Que título daria a um livro sobre a sua vida?

Um alentejano feliz.

 

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