Diário do Alentejo

Teatrela Novos Rumos recupera histórias de Ferreira

21 de maio 2021 - 10:00

Texto Luís Miguel Ricardo

 

Maria Ana Ameixa, 53 anos, professora de Biologia e escritora, é a guionista do projeto. Foi ela quem criou o enredo que está a apaixonar as gentes da vila de Ferreira do Alentejo e dos arredores, que podem ser o mundo. À conversa com o “DA”, começou por deslindar o porquê da designação de “teatrela”: “Este formato está entre o teatro e a novela. São usadas personagens do teatro, já conhecidas do nosso público e que fizeram fulgor em peças já exibidas, e foi criada uma trama por episódios, à semelhança de uma novela. O título Novos Rumos espelha o que vai acontecer na história”.

 

O formato exclusivamente multimédia surge como uma consequência dos tempos de pandemia, sendo o ecrã o palco que leva as emoções ao encontro do público. A criação do enredo “foi condicionada pelas personagens resgatadas dos elencos teatrais e que, curiosamente, são personagens inspiradas em figuras reais de Ferreira do Alentejo, infelizmente já falecidas”.

 

“Houve necessidade de criar uma trama com uma mensagem universal e que permitisse a ligação entre todas as personagens. Além disso, há igualmente uma mensagem muito específica para a população do concelho”, diz Maria Ana Ameixa, remetendo a descoberta dessa mensagem para os episódios da Teatrela, cujo número específico também não é revelado, ainda que vá adiantando que se cifra na casa das dezenas.

 

As gravações aconteceram entre julho e novembro do ano passado, mas só em março foi possível começar a mostrar o trabalho, uma situação justificada por Maria Ana Ameixa pela dificuldade em conciliar compromissos profissionais com o amor pela arte, relembrado que todo o projeto nasceu da carolice destes ferreirenses com a alma “atafulhada” de generosidade artística.

 

Ferreirenses singulares com talentos diversificados, que se encontram agregados a algumas coletividades da terra, também elas nascidas e nutridas pela paixão artística.

 

Artur Silva tem 44 anos, é músico e presidente da Associação Baú dos Talentos, a entidade que “dá cobertura” à produção da Teatrela Novos Rumos e que se apresenta como um porto de abrigo para os ferreirenses que transportam talento na alma. “Um dos objetivos da Baú é criar e desenvolver projetos que permitam a participação de novos talentos, mas também dos talentos que já cá andam há alguns anos nas diferentes áreas das artes e do artesanato e, de preferência, da nossa terra. Tentamos não colocar ninguém de parte. Quantos mais formos maior força teremos para defender a cultura e as tradições, mas também a inovação e a capacidade de adaptação a esta nova realidade que todos atravessamos”.

 

E quando surge a pergunta inevitável sobre as fontes de financiamento do projeto, a resposta do presidente da associação é esclarecedora: “A disponibilidade, a boa vontade, o respeito e a organização de toda a equipa envolvida desde o primeiro dia. Se tivéssemos financiamento, possivelmente teríamos conseguido ir ainda mais longe”.

 

A disponibilidade e a boa vontade de Artur Silva deram música ao projeto. Para já, são quatro temas criados e gravados em exclusivo para a Teatrela, havendo a possibilidade de surgirem novas músicas ao longo do desenrolar da edição dos novos episódios. Uma forma de criação diferente daquela a que está habituado. “As músicas para um espetáculo ao vivo são pensadas para envolver e pôr o público a cantar e, em alguns casos, a dançar. A energia da banda é fundamental. Uma vez que também sou guitarrista, faz-me sentido criar momentos em palco onde a guitarra assume um papel solista mais destacado, com direito a alguns improvisos. Neste novo contexto de trabalho, os temas têm uma duração inferior e, normalmente, não há maior destaque para a guitarra, nem espaço para o improviso. As melodias nas partes instrumentais são previamente compostas e o mais importante é a mensagem das letras”.

 

PRODUÇÃO

 

O grupo de teatro Ritété, fundado em 2009 por Rita Guerreiro e Teresa Jardinha, chama a si a responsabilidade de interpretação da trama. Rita dá vida ao Manuel, uma figura enigmática que “desagua” em Ferreira, proveniente de Trás-os-Montes, com uma missão que há de ser o foco da história. “Ser o protagonista é uma grande responsabilidade, pois tudo se desenvolve em seu redor. Em relação à construção da personagem Manuel, confesso que foi um pouco difícil, não propriamente por ser uma personagem no masculino, mas pelo facto de, na altura das gravações, estar grávida. Inicialmente, a barriga não se notava, mas mais para o final já ficava difícil disfarçar, assim como o cansaço, que era notório em algumas situações. Mas foi mais um desafio superado”, explica.

 

Para além da misteriosa personagem de Manuel, Rita Guerreiro interpreta ainda a desconcertante Rosa, uma mulher da vila que, fazendo “panelinha” com as vizinhas Chica e Brites, tem sempre muitas histórias da vida alheia para partilhar. “A Rosa é uma personagem que adoro representar. As vizinhas improvisam muito bem e dizem muita coisa que não está nos guiões. Recordo-me de estarmos a filmar num monte e um cão começar a ladrar, e a vizinha Rosa tentar afastá-lo com o guarda-chuva e ele, enfurecido, não parar. E às tantas, tive de dizer corta, porque já estava com medo do cão”, conta a atriz. “Outra situação foi o facto de estar com uma grande barriga, que tentávamos sempre disfarçar, embora, em determinada altura, já fosse difícil. E então improvisávamos dizendo: - que velha tão jeitosa com um belo par de seios todos empinados".

Para Teresa Jardinha, atriz de 47 anos que interpreta quatro personagens, a participação no projeto “foi muito encantadora e prazerosa, num formato completamente diferente do que estávamos habituados. Ouvi muitas vezes as palavras ação e corta pela voz do Miguel Carvalho, que filmou tudo, e que agora está na edição das imagens. Tive momentos em que, numa mesma tarde de gravações, fiz cenas com três personagens de seguida. Foi um tanto ou quanto louco, mas neste tempo de pandemia quisemos fazer tudo com o máximo de segurança e por isso não pedimos aos nossos membros mais novos para participar. Fizemos com o núcleo duro, como lhe chamamos”.

 

A gestão de todo o processo de cenas, cenários, adereços e guarda-roupa, esteve a cargo de Sara Ramos, 41 anos, arqueóloga de profissão, mas também atriz e produtora na Teatrela Novos Rumos. “Conseguir coordenar gravações com várias pessoas, com vidas profissionais e pessoais diversas foi o mais complicado, com a agravante de acontecer durante uma pandemia. Mas com a boa vontade de todos lá fomos conseguindo filmar as cenas”, explica Sara Ramos, revelando a estratégia usada para a gestão do processo: “os episódios escritos pela Maria Ana Ameixa foram divididos por cenas e foi feita uma tabela onde se colocava o nome das pessoas que nelas participavam, o dia e o local onde seriam filmadas. Havia cenas que eram continuação de outras, gravadas em dias diferentes, por isso também foi necessário organizar em listagens o guarda-roupa e os adereços utilizados, para que nada falhasse”.

 

Outra das preocupações, de acordo com Sara Ramos, foi a segurança da equipa. “Na gravação das cenas só estavam presentes os intervenientes nas mesmas, e as máscaras só eram retiradas no momento da filmagem. Desde a primeira hora, optámos por filmar o máximo de cenas ao ar livre e as cenas de interior foram, maioritariamente, filmadas em espaços pessoais. Filmámos muita coisa nas ruas, nos campos e nos quintais de Ferreira do Alentejo. Contámos com a colaboração e apoio de várias pessoas e entidades da terra, e de vários amigos que emprestaram espaços pessoais para as filmagens e adereços”.

 

TRABALHO “DESAFIANTE”

 

Por detrás das tecnologias que perpetuam as cenas esteve Miguel Carvalho, 23 anos, formado em Música Eletrónica e Produção Musical. “Foi um trabalho que desenvolveu e aprofundou as minhas competências artísticas e técnicas, visto que foi a primeira vez que realizei um projeto com esta dimensão temporal”.

 

“Ao início, foi desafiante a gravação das cenas, visto que o equipamento que possuíamos, especialmente no primeiro episódio, onde apenas dispúnhamos de uma câmara e de um gravador digital, era insuficiente. Contudo, continuámos a angariar material, sendo este comprado ou fornecido por terceiros, como a Rádio Singa e o Imstudio. Outras dificuldades que encontrámos durante o processo, foram as localizações não controladas, pois gravámos na via pública com automóveis a passar, o que tornou a gravação mais complexa e incómoda”, acrescenta.

 

Segundo o realizador e editor, “houve uma consciencialização de que esses elementos não estavam sobre o nosso controlo e utilizámo-los a nosso favor, aproveitando vários momentos, gestos e conversas espontâneas, que tornaram as cenas mais naturais”. Daí que faça um “balanço bastante positivo” do projeto que continua a ter conteúdos editados diariamente, de forma a conseguir cumprir o compromisso de disponibilizar ao público três episódios por semana.

 

E o público tem correspondido com interesse e fidelização. José João Cavaco tem 68 anos, é o atual presidente da União de Freguesias de Ferreira do Alentejo e Canhestros e é também um dos fiéis seguidores desta produção com ADN ferreirense. Segundo refere, a Teatrela Novos Rumos pressupõe um recuar no tempo. Um recuar a 2016, altura em que se fundou a Associação Baú dos Talentos. Um recuar ao momento da formação de um grupo, maioritariamente de ferreirenses, com formas de expressão artísticas ecléticas: teatro, música, escrita, rádio e multimédia, cujo trabalho continuado de aperfeiçoamento de talento possibilitou a produção deste projeto.

 

Diz José Cavaco que expressões como “ó águia que vais tão alto” ou “um alentejano de cima de uma pedra vê o mundo”, usadas na Teatrela, dão conta “da grandeza do Alentejo, da sua paisagem de beleza superior, que se funde nas pessoas e moldam a sua personalidade. Novos Rumos é uma história de ficção assente no mundo real com homens e mulheres que não apontam a biqueira da bota quando olham para lá da linha do horizonte”.

 

“Tudo aqui é original – o suporte musical, os textos, a interpretação que recupera, sobretudo, figuras típicas da terra, o velho sotaque ferreirense, assente no arrastar das palavras; e a velha desconfiança relativa a forasteiros, que nos deixa de pé atrás nos primeiros contactos”, acrescenta o autarca, segundo o qual tudo o que a trama transporta é merecedor de palcos que estejam para além da fronteira de Ferreira do Alentejo.

 

A contribuir para essa dimensão global do projeto, tem estado, desde o primeiro momento, a Rádio Singa, que transmite em FM para a região, e para o mundo na sua emissão ‘online’, os episódios da Teatrela. 

 

José Damas, vice-presidente da estação radiofónica da vila, a mesma estação que em 2015 transmitiu a radionovela Menorah, aponta as diferenças entre as duas produções: “Tecnicamente, é um trabalho diferente da radionovela, sem poder afirmar que é mais fácil ou mais difícil. Enquanto na radionovela vivíamos, basicamente, dos sons gravados, montados e compostos, que conferiam a autenticidade da trama, na Teatrela, os sons são obtidos em tempo real, à medida que as cenas são filmadas e gravadas. Acresce agora que o público pode ver, nas plataformas digitais, os episódios, que depois são transmitidos na rádio”.

 

Na antena da Rádio Singa os episódios passam às segundas, quartas e sextas-feiras e nas plataformas digitais do Grupo de Teatro Ritété os novos conteúdos estreiam aos domingos, terças e quintas-feiras.

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