Diário do Alentejo

Cartas de Mariana Alcoforado chegam ao teatro lírico

16 de fevereiro 2021 - 10:30

Texto Rita Palma Nascimento | Foto Jorge Carmona

 

Deu-se o caso de João Guilherme Ripper se ter cruzado, em 2016, no Baixo Alentejo, com a história de amor de Mariana Alcoforado. Deu-se o caso de Arthur Nestrovski, diretor artístico da Orquestra Sinfônica de São Paulo (OSESP), ter sido o responsável pela primeira edição do livro “Cartas Portuguesas” no Brasil. E deu-se ainda o caso de ter surgido a ideia de produzir uma ópera sobre o assunto no âmbito do festival SP-LX, que reúne a OSESP e a Orquestra da Fundação Calouste Gulbenkian.

 

Monodrama para soprano e orquestra, “Cartas Portuguesas” teve estreia em finais de agosto de 2020, em São Paulo. Na próxima sexta-feira, dia 19, às 19:00 horas, será transmitida ‘online’. O maestro Hannu Lintu dirige a orquestra Gulbenkian. A soprano Carla Caramujo dá “vida” a Mariana Alcoforado. A encenação é assinada por Jorge Takla.

 

Em entrevista ao “Diário do Alentejo”, João Guilherme Ripper fala sobre o desafio que representou escrever esta ópera.

 

Como é que surgiu a encomenda desta ópera?

Foi em 2018, quando Arthur Nestrovski me encomendou um monodrama para soprano solista e orquestra sobre um texto à minha escolha. A obra seria apresentada no âmbito do projeto SP-LX. Apresentei logo a proposta de escrever “Cartas Portuguesas”, ao que Nestrovski reagiu com surpreendente entusiasmo. Eu não sabia naquela altura que ele, músico, escritor e editor, havia sido o responsável pela primeira edição do livro no Brasil. O projeto tinha boa estrela!

 

A ópera estreou em plena pandemia, em São Paulo, sem público e com transmissão ‘online’. Chegou a ser apresentada em Lisboa, com público restrito. Será agora transmitida pela Gulbenkian. O que se seguirá?

 Em junho de 2021 subirá ao palco da Sala Minas, com Camila Titinger como solista, acompanhada pela Filarmónica de Minas Gerais dirigida por Roberto Tibiriçá. Até o fim do ano, deverá ser encenada também no Rio de Janeiro. Enquanto isso, José António Falcão está a trabalhar no sentido de apresentar e gravar a ópera “in loco”, no Convento Nossa Senhora da Conceição, de Beja, precedida de uma nova obra orquestral alusiva ao Alentejo que escreverei especialmente para a ocasião.

 

E a vontade de escrever uma ópera sobre Mariana?

Eu já trazia a experiência do monodrama “Domitila”, que escrevi em 2000 sobre a correspondência amorosa do Imperador D. Pedro I do Brasil (vosso D. Pedro IV) e sua amante Domitila de Castro, a Marquesa de Santos. A obra foi apresentada em cidades do Brasil e Portugal. 

Gosto dos romances epistolares, sobretudo aqueles que são ancorados na vida real e o autor ou autora é a própria personagem. Fascina-me que apareça sem (ou com poucos) filtros literários e ficcionais, presente na sua crua humanidade, autêntica, plena de contradições e envolta em múltiplas dimensões dramáticas. Quantas delas encontrei em Mariana Alcoforado: menina, mulher, religiosa, mundana, sedutora, recatada, escritora…

 

As cartas, propriamente ditas, são de cariz monotemático, centradas no amor, na ardente paixão da freira por Noël de Chamilly. Foi um desafio?

Sim, o caráter monotemático das cartas representou um desafio, uma vez que não se prestariam a um enredo dramático sem a introdução de elementos de contraste. Para criar uma linha de narrativa, parti da vida conventual de Mariana Alcoforado dentro do contexto histórico e religioso seiscentista. Introduzi outros textos e outras músicas para provocar o jogo de “chiaroscuro” tão caro ao barroco: o rito latino da “Liturgia das Horas”, um trecho do “Cântico dos Cânticos” e o gregoriano “Veni Sancte Spiritus”. Devo a Maria Silva Prado Lessa, minha querida enteada e especialista em literatura portuguesa, a descoberta do poeta barroco Rodrigues Lobo (1580-1620) e seu poema “Leanor”, que usei na ária em que Mariana recorda a infância.

 

O maestro João Guilherme Ripper compôs a ópera, escreveu o libreto, mas que significado tem para si cantar o amor? Ou este amor?

Significa a própria razão de “Cartas Portuguesas” existir como obra literária e dramático-musical! E não diria melhor do que “Soror Mariana – Beja”, este pequeno e imenso poema de Sofia de Mello Breyner: “Cortaram os trigos./ Agora a minha solidão vê-se melhor”.

 

As paixões são inspiração?

A paixão costuma provocar um tal estado de excitação, que os pensamentos e ações de quem sente, muitas vezes se tornam incontidos. É um estado único, de perceção aguçada, de plenitude, de dor e delícia, de nervos à flor da pele e rendição incondicional. 

Como compositor e libretista, interesso-me mais pelo apaixonado ou apaixonada; interesso-me pela forte emoção expressa em palavras, gestos, passível e possível de ser traduzida em texto, música e cena; interesso-me pelo drama psicológico, a irracionalidade do ser amante, o percurso deste sentimento às vezes incontrolável que Camões canta magistralmente no seu poema “Amor é fogo que arde sem se ver”.

 

“Cartas Portuguesas” é uma ópera sobre a clausura, a solidão e o afastamento, um tema com estreita ligação à realidade dos nossos dias. De que forma pode a ópera ajudar-nos, ensinar-nos ou levar-nos a conviver melhor com o nosso eu, com as nossas emoções?

Quando recebi o pedido para escrever “Cartas Portuguesas” em 2018, o nome covid-19 nem sequer existia! Creio que, em dois aspetos, a encomenda conjunta da OSESP e da Gulbenkian teve o condão da profecia. Em primeiro lugar, a obra deveria utilizar apenas uma solista. Se exigisse mais cantores teríamos enfrentado sérios problemas para encená-la durante a pandemia. Coube-me a mim introduzir involuntariamente o segundo elemento profético ao escolher um texto escrito na clausura, que aborda o afastamento, a solidão e a impossibilidade da personagem em viver livremente seu amor. Estou convencido de que a ópera tem a capacidade de suspender a perceção do fluxo do tempo. Árias, por exemplo, são momentos de grande concentração emocional, como um espelho a capturar, ampliar e fixar determinado sentimento que, na vida real, seria breve e fugidio. Por refletir a nossa alma, a ópera será sempre necessária, como é necessária toda a arte. E a arte é o melhor produto do engenho humano; resulta do livre pensamento e da criação; liberdade que nenhum ‘lockdown’ jamais poderá enclausurar.

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