Diário do Alentejo

Fernando Venâncio: "Assim Nasceu uma Língua"

25 de junho 2020 - 10:00

Saiu de Portugal para fugir à guerra, doutorou-se na Holanda, deu aulas em três universidades., escreveu livros. O mais destacado linguista português regressou à terra onde nasceu: Mértola.

 

Texto Júlia Serrão

 

Em "Assim Nasceu uma Língua", Fernando Venâncio conta-nos a história da língua portuguesa de forma original e apaixonante, para defender que o português “é um fenómeno historicamente tardio que nasce do galego, que por sua vez nasce do latim”. Diz e escreve no livro que até ao ano de 1400 "não há nenhuma diferença essencial" entre galego e português. "É só a partir do século XV que surge pela primeira vez a expressão língua portuguesa”. Por isso, “quando Portugal surge, o primeiro rei, D. Afonso Henriques, fala galego. Não havia outra língua”.

 

A obra que diz ser “de uma vida, escrita em oito meses”, é resultado de muitos anos de pesquisa e reúne também alguns artigos publicados em diversas revistas internacionais. 

 

Linguista e escritor, Fernando Venâncio é atualmente uma das grandes referências da cultura portuguesa com vasta obra publicada entre romances, contos e ensaios.

 

A certa altura, também escreveu crítica literária que publicou em revistas e jornais portugueses, como o "Expresso" e o "Jornal de Letras", a "Ler" e a "Colóquio - Letras". Mas, nos últimos vinte anos, centrou-se na linguística, sendo atualmente a sua colaboração com os media exclusivamente nesta área, que também é a da sua formação académica: licenciou-se em Linguística Geral na Universidade de Amesterdão, em 1976, e anos mais tarde, em 1995, doutorou-se com a tese "Estilo e Preconceito: a Língua Literária em Portugal na época de Castilho (1835-1875)".

 

Na Holanda iniciará a docência, ensinando cultura portuguesa nas universidades de Nimega, Utreque e Amesterdão. Viveu lá 47 anos, os últimos num acolhedor apartamento ladeado por um parque e uma mata, uma paisagem “belíssima” que às vezes ainda lhe aparece em sonhos de olhos abertos. Casou e enviuvou, tem duas filhas e um neto de 10 anos, Christian, a quem dedica o livro cuja primeira edição esgotou poucas semanas depois de surgir nas livrarias.

INFÂNCIA EM MÉRTOLA

Em Mértola, numa casa branca junto à muralha do castelo com uma vista fabulosa sobre os  telhados do casario e o rio Guadiana, onde nasceu e à qual voltou para viver há pouco mais de três anos, Fernando Venâncio conta que começou a interessar-se pelos fenómenos linguísticos com dois anos de idade, quando se mudou da vila calma alentejana para a capital do País.

 

“Quando chego a Lisboa e tomo contacto com a fala dos lisboetas dá-se um choque, e aí começo a ter noção de que a fala é qualquer coisa que não é uniforme, que se fala de forma diferente em diversos sítios”. Aos 10 anos, descobre o sotaque do Minho ao mudar-se para Braga, onde ficará nos oitos anos que se seguem. “O linguista nasce aí, e nasce desses embates, desses choques. Depois tive a oportunidade de formar-me em linguística em Amesterdão”, conta Fernando Venâncio ao "Diário do Alentejo".

 

Mesmo quando se dedicava à literatura, a atenção à língua era constante e intensa. Uma tendência que o leva a descobrir e admirar alguns escritores de há 30 ou 40 anos e outros atuais. “O que vejo neles é as lindas histórias que contam, mas também a língua riquíssima que eles usam para as contar”.

 

Apaixonado por este mundo das palavras, irrita-o profundamente a opinião de que agora se fala mal português, uma ideia que diz ser “de decadência, tão antiga e tão humana”, transversal a todos os tempos. Encontrou “exatamente as mesmas queixas, de que já não se escrevia como antigamente” nos documentos do séc. XIX que leu para preparar a sua tese de doutoramento.

 

Seja como for, assegura perentório que o seu “espírito” não se deixa levar por afirmações como essas. “Fala-se muitíssimo bem português. Falamos melhor do que há 100 anos e muito melhor do que há 200, e escrevemos tão bem como há 50 e melhor do que há 100, e muito melhor do que há 200 anos”, observa, apontando o dedo aos autores de livros com vastas listas de erros ortográficos ou gramaticais: “Essa gente é linguisticamente ignorante, são criminosos, mas vendem como pãezinhos quentes. Era preciso cortar-lhes qualquer possibilidade de contacto com o público”.

FOTO: RUI GAUDÊNCIO ('PÚBLICO')FOTO: RUI GAUDÊNCIO ("PÚBLICO")

O "SALTO" PARA A HOLANDA

Manhã adentro, com o sol a espreitar pela casa térrea cuja porta se mantém despreocupadamente aberta, Fernando Venâncio continua a viagem pelas suas memórias. A sala, coberta de livros e papéis do chão ao teto, acolhe um vasto e invejável arquivo que trouxe consigo. O resto deste património vive bem guardado em formato digital no computador, onde recorre para novas pesquisas. Outro tanto “em tão pequeno espaço”, maravilha-se.

 

A sede de conhecimento acompanha-o desde sempre, sobretudo nas questões da língua. Foi uma criança curiosa, atenta às palavras. Mas também teve “muita sorte na vida, quanto à aprendizagem”, dirá de seguida. Aprendeu muito com todos os mestres. Primeiro na escolinha da “menina Olívia”, em Mértola - para onde voltou aos cinco ou seis anos por um período de seis meses – que era uma espécie de pré-primária da província, nos anos 50 e 60. Depois, em Lisboa e em Braga. Lembra-se de todos os professores que teve com uma clareza colossal: os nomes, as idades e o que aprendeu com cada um deles. Está agradecido a todos.

 

Por fim, veio o curso do seminário, onde aprendeu história e geografia, mergulha no estudo da língua portuguesa, aprende o francês e o inglês que agora também domina. Conta que tudo isso teve um impacto muito positivo, porque aprendeu muita coisa. Acabou a formação religiosa e esteve “vai, não vai para se tornar padre” (risos), mas acabou por desistir.

 

Segue-se a tropa, em plena guerra colonial. Cumpre seis meses ‘no continente’ e, aos 26 anos via-se na iminência de ser enviado para a Guiné-Bissau, “o sítio mais perigoso na altura”. Por isso, decide dar o "salto" para a Holanda, onde tinha algumas pessoas conhecidas e, nesse sentido, o país já lhe era familiar.

 

Embora não entendesse nada da língua, “pelo menos não lhe era estranha a imagem da escrita da língua, o que já ajudava”. Foi o medo de morrer, e não a discordância com a guerra pois na altura não tinha qualquer formação política que lhe permitisse esse tipo de avaliação, que o levou a sair do País. “Em 1970, uma pessoa como eu, com pouca formação prática, oficial, óculos, com pouco jeito para a vida, era morte certa”, sublinha. 

 

A adaptação ao novo país correu de forma tranquila. Fernando Venâncio aprendeu o holandês rapidamente e ao fim de um ano já se “safava muito bem”. Reconhece que essa facilidade teve a ver com a sua preparação linguística. Atualmente, é bilingue entre a língua materna e a língua do país que escolheu para viver a maior parte da vida.

 

O resto, já se conhece: licenciou-se, doutorou-se, foi professor em três universidades. A par da carreira académica e profissional, construiu família: casou com uma holandesa com quem teve duas filhas, a quem ensinaram português com práticas diárias à mesa, nas horas das refeições – a mulher “falava muito bem português”.

 

Depois da revolução do 25 de abril de 1974, regressou uma primeira vez a Portugal porque havia uma amnistia, mas depois, durante vários anos, voltou a adiar as viagens “porque tinha uma complicação com a tropa”, que se prolongou até 1978. Só tornando-se cidadão holandês é que poderia “voltar sossegado”, e foi isso que fez, renunciando à nacionalidade portuguesa, uma vez que a Holanda não permite a dupla nacionalidade. Nunca lecionou em qualquer universidade portuguesa, mas deu pequenos cursos e aulas pontuais como professor convidado. 

REGRESSO A CASA

O regresso ao Alentejo acontece por razões muito práticas. Havia a casa, que era do pai, situada num lugar privilegiado e tranquilo da vila de Mértola (pelo menos de inverno, porque de verão há muitos turistas a percorrer a última ruela da vila a contar do rio), que tão bem se presta a reflexões e à escrita – foi nesse sossego que escreveu o livro "Assim nasceu uma língua".

 

Por outro lado, tinha ali a viver uma filha e o neto. Agora que eles partiram não está arrependido, mas reconhece que o local, que é incontestavelmente “de uma grande beleza natural, tem muitas limitações”. Nomeadamente em matéria de deslocações, que se tornam tão difíceis quando não se tem carro próprio. É o caso, neste momento. “Quando se tem a minha idade, estar a 50 quilómetros do hospital é uma distância muito grande, por exemplo”, resume.   

 

De qualquer forma, dificuldades à parte, o período de adaptação já vai longe. Fernando Venâncio diz que esses primeiros tempos “foram terríveis”, tendo que “se proibir de fazer comparações entre tudo o que tinha perdido e tudo o que lhe faltava ali, porque dava em doido”.

 

Três anos e meio depois, está habituado. “Já voltei à Holanda várias vezes. Já sei que não vivo lá, esse capítulo fechou-se e, portanto, estou em paz a esse respeito”.

 

Agora, os dias correm sem grandes sobressaltos ao sabor das estações e das rotinas que foi interiorizando. Há a vida social virtual “intensíssima no Facebook”, comenta com uma boa gargalhada, explicando que tem cinco mil amigos na rede. Minimiza as reações que os seus 'posts' podem provocar, mas sente “um gosto muito grande em ser lido por 30, 40 pessoas”. E há a vida social real, em Mértola, que “é muito agradável”. Mas mesmo esta obriga-se a limitar porque tem muito trabalho pela frente: o próximo livro está em marcha, há outro programado com tema definido, e tem projetos para escrever “vários nos próximos 20 anos”.

 

Fernando Venâncio explica que o livro que está a escrever neste momento partiu de um convite da editora Guerra & Paz, que também propôs o tema. Vai ser sobre figuras de estilo, e já tem título: "Se chover, tem aqui um guarda-chuva". Ainda não há data de publicação agendada, mas vai ter que o entregar no verão. “Tenho um editor que me convida para escrever, o que é realmente um sonho. Melhor do que isso não há no mundo, por isso estou muito feliz, muito contente e muito grato”, sublinha. E depois deste virá outro, segundo o autor, uma obra “volumosa” à semelhança de "Assim nasceu uma língua", que se propõe contar a influência do espanhol e do francês na língua portuguesa.

 

Com dias tão preenchidos pela frente, Fernando Venâncio vai ter “que ter uma grande disciplina, porque o ato da escrita impõe algum isolamento”. E nesse sentido, a sua casa, vizinha do castelo, é o lugar certo para a criação. “Este lugar é ótimo para escrever, está a ver esta tranquilidade?”.

 

DESACORDO ORTOGRÁFICO

Fernando Venâncio discorda do Acordo Ortográfico (AO) de 1990. Ele, que até nem é contra os acordos diplomáticos sobre questões linguísticas, e até chegou a propor um em 1984 num longo artigo que escreveu no "Jornal de Letras", diz no entanto que o AO de 1990 não tem sentido: “Está muito mal concebido, sobretudo para o português de Portugal. Não só está desordenado, como provoca, e já está a provocar, uma porção de mal-entendidos, chamadas hipercorreções”.

 

Um dos erros mais pertinentes “é o enorme paradoxo que existe entre o princípio de que a pronúncia é o primeiro critério e não a etimologia, e o resultado”. E o resultado, por vezes, “é não sabermos o que quem escreve quer dizer, é preciso ler bem, e não se lê bem”.

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