Ana Santos, música e neta do autor, e André Tomé, arqueólogo e ex-coordenador do Centro Unesco de Beja, recordam Isaclino Francisco da Palma. Do mestre oleiro evocam-lhe o sorriso, a boa disposição e a dedicação à sua arte, que lhe permitiu transformar argila encarnada em compêndios de história do seu querido Alentejo e da sua amada cidade de Beja.
Texto José Serrano
“Eu sempre conheci o meu avô a moldar o barro, cresci com a ideia de que era aquilo que ele fazia, exclusivamente, e quando percebi que trabalhava num café pareceu-me estranho”. Quem o recorda é Ana Santos, neta de Isaclino Francisco da Palma, mestre oleiro e referência da cultura bejense e da arte popular do País falecido na passada semana, aos 97 anos.
“Do que me recordo, de lá mais atrás, é vê-lo sentado, em sua casa, à mesa da cozinha, daquelas redondas com braseira, a transformar o barro com as mãos, utilizando pequenos objetos que o ajudavam a fazer as peças – com uma tampa de esferográfica contruía, por exemplo, aquele ‘enroladinho’ das samarras dos pastores. Sei que fez algumas experiências com a roda de oleiro, mas era, sobretudo, com as mãos que ele fazia os seus trabalhos”. Figuras de barro que povoavam o seu imaginário alentejano, rural e urbano, da sua região e da sua cidade. Cantadores, guardadores de gado, mondadeiras, almocreves, aguadeiras, assadoras de castanhas e sapateiros, a par de tantas outras imagens, ilustrativas de lendas e factos históricos, de figuras religiosas, de namoricos junto às fontes e do amor de perdição de soror Mariana Alcoforado. Todas essas peças de argila encarnada tiveram, curiosamente, origem num desafio proposto por Leonel Borrela, pintor bejense, amigo e vizinho de mestre Isaclino, ao balcão do Café Isac – “que ainda existe, fica ali por cima da esquadra da polícia” – que o artesão geria. “A personalidade criativa esteve-lhe sempre presente e desde criança que o meu avô, tal como o seu pai, esculpia, talhando com um canivete a madeira – construía gaiolas, fazia fisgas e peões, coisas assim – e a cortiça, a partir da qual criava miniaturas de alfaias agrícolas. E um dia o Borrela propôs-lhe trabalhar artisticamente o barro. E o meu avô aceitou o repto”.
Com a matéria-prima arranjada, mestre Isaclino atreveu-se na construção da primeira peça: um pastor. Começou, então, a moldar a figura, nos entretantos dos atendimentos no café, com a dedicação à peça relegada para segundo plano, por obrigações para com os clientes. Recorrentemente, quando à peça voltava, o barro tinha “murchado”, caído. “O meu avô aborreceu-se tanto com aquilo, que lhe deu um murro, de cima para baixo. E o que era para vir a ser um pastor ficou com um feitio que se assemelhava a uma senhora de joelhos, a rezar. E foi essa a sua primeira peça. O meu avô contava essa história muitas vezes, com muita graça”.
Ana Santos recorda-lhe, precisamente, a boa disposição, a alegria de ensinar aos netos, brincando, a arte de construir caras em barro, à volta da mesa redonda, e o assobio que Ana Santos, violinista, acredita poder ter estado na origem da sua escolha profissional. “O meu avô estava sempre a assobiar, ia pela rua assobiando, fossem modas alentejanas, fados ou músicas inventadas. Aquele som alegrava-o. E eu gostava da companhia do assobio do meu avô, que me despertou para a música”.
Desde a figura do pastor, transformada numa senhora a rezar, cada peça que mestre Isaclino elaborava constituía-se, fundamentalmente, como um impulso. “O meu avô nunca pensou no seu trabalho artístico com o objetivo primeiro de o vender. Fazia-o como passatempo, pela ânsia de criar e pelo desafio inerente a essa criação. Por isso, não criava dois cantadores iguais, havia sempre algo de diferente em todas as suas peças”. Para as quais desejava que “vissem” mundo. “Uma vez fui tocar com a Celina [da Piedade] ao Luxemburgo e o avô pediu-me que eu levasse um pastor de barro, e que o deixasse por lá, num sítio à minha escolha, para que a obra dele ‘viajasse mais um bocadinho’. E lá deixei o pastor, na cidade de Esch-sur-Alzette, num restaurante de um conterrâneo bejense”.
O espírito emancipado que Isaclino albergava na sua condição de criativo granjeou-lhe a admiração de vultos da cultura nacional, a exemplo de Manuel da Fonseca e de António Aleixo, escritor e poeta que frequentaram o seu café, “onde trocavam piadas e galhardetes sobre os trabalhos que cada um ia fazendo”, refere Ana Santos. Relativamente à imprevisibilidade de de uma pancada surgir uma mulher a orar, a neta de Isaclino diz não ter o artista visto nessa mera casualidade qualquer vislumbre de epifania. “O meu avô não era uma pessoa religiosa. Mas acreditava muito na natureza e no pensamento. Uma vez contou-me que tinha tido uma ideia para fazer um trabalho, mas que tinha deixado o tempo passar, acabando por não a concretizar. ‘E não é que passadas umas semanas’, disse-me ele, leu no jornal uma notícia sobre a ideia que tinha tido, realizada por uma outra pessoa. E achou curioso e normal, ao mesmo tempo, porque o meu avô sentia que as ideias não são nossas – ‘elas vêm ter contigo e se tu não as realizas hão de ir procurar outro alguém que as concretize’. Tinha este pensamento, assim, muito livre…”.
O trabalho que era “a sua vida”
André Tomé, ex-coordenador do Centro Unesco de Beja, um dos responsáveis pela reorganização e posterior exibição, permanente desde 2020, no edifício suprarreferido, dos trabalhos em barro de Isaclino Francisco da Palma, relembra: “Quando tomei contacto com a sua obra imediatamente percebi que havia ali muito valor. Estando em permanente exibição, a qualidade artística das peças possibilitaria acrescentar – sendo o centro visitado por turistas, por alunos e pela comunidade em geral – um valor didático considerável. Porque a mostra, que foi, naturalmente, pensada com o autor, permitiria falar um pouco da figura e da pessoa que era o Isaclino e fazer a reflexão sobre o que é que é Beja. Não só dentro de um âmbito mais etnográfico, objeto principal de investigação e divulgação do centro Unesco, como, também, histórico, uma vez que as peças permitem contar um pouco da história da cidade”.
Do mestre oleiro, André Tomé evoca-lhe o sorriso, “como se essa expressão fosse gerada pela alegria de quem viu passar pela sua cidade homens e mulheres brilhantes, que apontavam à sabedoria, ao passado e ao futuro, como Abel Viana”. É também por isso, diz, que Isaclino é “personagem incontornável da história do século XX bejense”, uma vez que o seu labor, de atendimento ao balcão do café, “lhe permitiu contactar com todos, do mais pobre ao mais abastado”. Dessa forma, frisa o arqueólogo, Isaclino “conhecia os desejos profundos dessa gente, as suas ideias mais brilhantes, as histórias mais curiosas e engraçadas que cada um desses homens e mulheres evocavam”, tendo sido um “observador da vida intelectual bejense” mas, também, “do pior que trazia a desigualdade e a carestia” dos tempos pré-revolucionários. “Talvez tenha sido por isso que, um dia, ao tentar descrever o seu trabalho como escultor, me tenha confessado que esse trabalho seria a sua vida. As duas dimensões, homem e artista, participante e observador da vida quotidiana da cidade, ganhavam uma expressão máxima no barro, meio através do qual conseguiu expressar aquilo que via e sentia pela cidade e região”. Por tudo isto, Isaclino Francisco da Palma merece um distinto reconhecimento, frisa André Tomé. “Não apenas pela qualidade da sua arte de trabalho com o barro, mas pela forma como soube viver e interpretar Beja e o Alentejo. Muitos outros artistas populares pisaram e vão pisando as terras alentejanas, mas, pelo que viu e ouviu, pela reflexão que fez com o barro sobre a condição dos vários grupos que caracterizavam a sociedade bejense, mestre Isaclino continua a ser o mais luminoso de todos eles”.