Diário do Alentejo

Eleições Legislativas 2024: o tempo urgente dos atores contra o tempo reflexivo da sociedade
Opinião

Eleições Legislativas 2024: o tempo urgente dos atores contra o tempo reflexivo da sociedade

Silvério da Rocha-Cunha | Doutor em Teoria Jurídico-Política Coordenador do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade de Évora

29 de abril 2024 - 12:00

Ilustração Susa Monteiro/Arquivo

 

As eleições Legislativas do passado dia 10 de março colocam interrogações em torno da dinâmica política criada pelos resultados. Todos os conhecemos. Como compreender as alterações? Para isto é relevante notar que há toda uma narrativa algo mítica em torno dos partidos políticos em geral a carecer uma certa relativização. Destacarei alguns temas.

1 – O primeiro a merecer um olhar crítico tem a ver com a fenomenologia dos partidos políticos. Nascidos a partir do séc. XVIII no Ocidente, os partidos políticos nunca conheceram uma “era de ouro”. Com efeito, sendo os partidos mecanismos de conjugação de interesses que competem pelo poder, sempre tiveram de se sujeitar a voltas e reviravoltas da História, altos e baixos, adaptações, crises, extinções. No mundo dos partidos tudo já aconteceu. Este mundo só é compreensível numa perspetiva de longa duração, embora os eleitores tenham, em geral, a sensação de que no presente tudo irá conhecer o seu desenlace. Atualmente, verifica-se uma aceleração do tempo histórico, nomeadamente, pela existência das novas tecnologias da informação e da globalização económico-financeira, que não retira importância ao tempo longo, mas conduz a uma mais rápida sucessão de eventos.

2 – Os partidos vivem, assim, a dupla e contraditória necessidade de manter a sua “pegada” de origem e a de renovar os seus métodos de atuação em sociedades crescentemente interdependentes, mas muito diferenciadas e plurais, que segregam um “espírito de época” profundamente individualista. Todavia, nem por isso os partidos deixam de possuir como sua grande “marca” serem grupos que possuem uma determinada visão dos problemas do mundo e da sociedade onde se inserem, aspirando a obter o – ou participar no – poder mediante eleições. Mas as dificuldades dos partidos não se ficam por aqui. Na verdade, cada partido deve assegurar mínimos de compromisso interno dos seus militantes, ainda que acolha apoiantes muito diferentes entre si, ao mesmo tempo que deve emitir mensagens consolidadas aos seus potenciais eleitores. Por cima de tudo isto pairam algumas funções que quaisquer partidos têm de desempenhar: representar interesses, ter em vista produzir ideias para políticas a seguir, propor soluções de governo, gerar valores e interpretações sobre a função do político, das instituições, da sociedade em geral.

3 – Do outro lado do espelho, se assim se pode dizer, temos a sociedade de onde nascem os partidos. Os partidos nascem do sistema social, não são algo proveniente de fora. Qualquer sistema social desenvolve uma determinada “cultura política”, que é o resultado das estruturas macro-sociológicas e estruturais e dos processos micro-sociológicos e mesmo psicológicos de indivíduos e pequenos grupos. Existe no campo político uma margem larga para diversos fenómenos: cognitivos, afetivos e valorativos sobre o que “é” a sociedade e sobre como, a partir dessa perceção, ela “deve ser”. É desta mistura de elementos que surge a maior ou menor legitimação de um sistema político, porquanto a grande maioria dos indivíduos tem sempre alguns motivos para aderir a um determinado sistema político mesmo quando dele discorda em muitos dos seus aspetos.

A esta mistura chamamos a “cultura cívica”. Dela emerge maior ou menor confiança nas instituições políticas. Ela também é resultado da maior ou menor satisfação de necessidades básicas que, por sua vez, vai conduzir a motivações mais ou menos superiores. O bem-estar económico gera segurança, logo, contribuirá, evolutivamente, para o nascimento e aparecimentos de valores “pós-materialistas” mais sofisticados. Fala-se hoje no crescente alheamento subjetivo dos indivíduos pela política. Na verdade, porém, os estudos mostram que este desinteresse é menor nas “velhas democracias”, e isso é assim porque a cultura política nestes sistemas políticas sempre foi mais densa.

4 – Os partidos constituem uma ponte entre o sistema ideológico e o sistema de mentalidades que compõem qualquer sociedade. O sistema ideológico é de algum modo mais superficial, pois diz respeito a grandes proclamações que pretendem abrir caminhos do futuro, mas o facto é que cabe ao sistema de mentalidades, que é um aglomerado de costumes, princípios de moral convencional, relações interculturais, identidades pré-reflexivas que alimentam o imaginário social, alimentar os pilares de compreensão antropológica que sustentam um sistema social no seu conjunto. Este está em permanente mudança impercetível, qual pó de ampulheta sempre a cair, embora dê aos humanos a sensação de estabilidade.

5 – Que nos dizem as recentes eleições Legislativas? Uma análise superficial fará uma simples contabilidade de votos. Fazendo-a, poder-se-á sinteticamente dizer que houve uma expressiva subida do Chega, uma subida expressiva do Livre, uma derrota da AD, uma derrota do PS, manutenção em “zona cinzenta” dos restantes partidos. Contudo, em termos politicamente relevantes importa notar os ganhos do Chega. É a nova alteração do xadrez parlamentar que importa sublinhar. Poderíamos agora enveredar por previsões momentâneas, tentando adivinhar os próximos movimentos no xadrez político. Limitar-me-ei a prever que ao Chega convirá permanecer numa posição fortemente agónica, virada para uma agitação que mantenha a perceção de que a instabilidade é uma realidade insustentável, a fim de convencer o eleitorado de que apenas o bloco mais à direita conseguirá apaziguar a sociedade. Será a AD o bloco político mais penalizado, quer por esta pressão, quer pelas tensões internas que tal pressão provocará no seu eleitorado. Ao Chega nunca convirá uma legislatura completa, pois a estabilidade do sistema também provocará fissuras neste partido, porque o seu eleitorado é constituído por um conjunto de negações e descontentamentos que são, até certo ponto, díspares em termos ideológicos.

6 – De facto, este partido tem uma natureza que ainda não é, em termos politológicos, suficientemente clara. Por um lado, porque surge como sendo um partido “anti-sistema” que vem introduzir dinâmicas centrífugas que tendem a polarizar o sistema político, debilitando o espaço do chamado “centro”. Por outro lado, é um partido que para muitos parece estar próximo dos atualmente chamados partidos “populistas”. Não creio que esta seja uma classificação suficientemente esclarecedora. Com efeito, o “populismo” é uma designação antiga de movimentos que surgiram no séc. XIX, que sofreram um entorse ideológico com os chamados movimentos “justicialistas” da América Latina nas décadas de 30 a 60 do séc. XX, que se caracterizaram fundamentalmente por se constituírem como regimes presidencialistas, autoritários, em países com processos de modernização política problemáticos.

Ora, o Chega não me parece ser um partido com estas características historicamente não recenseáveis em Portugal, embora sejamos um país que, como muitos outros países sul-europeus, não se modernizou nos termos que se atribuem à Europa liberal-capitalista. É evidente que, em termos conjunturais, o Chega foi, nestas eleições, buscar votos à abstenção, assim como a partidos como a AD, o PS e mesmo o PCP, embora isso nos diga mais sobre a natureza do eleitorado português do que sobre uma qualquer especificidade ideológica do Chega. Este partido conseguiu, na verdade, constituir-se como “catarse” de um momento complexo de impasse global em que vivemos, mas nem sempre compreendemos. E nisto Portugal acompanha os impasses dos países mais desenvolvidos do Ocidente face ao que poderemos designar provisoriamente pelo “devir enigmático do mundo”.

7 – Existe, quanto a mim, um conjunto de camadas sócio-culturais e sócio-históricas que se agregaram para desaguar num momento histórico particular num partido que transporta consigo algumas características que se podem notar.

O Chega é um partido que tem uma base diversificada, em termos religiosos, em motivos de descontentamento, em termos de formas de vida, mas que está unida pela sensação de vazio quanto a sentimentos de pertença a uma “nação” que se dilui cada vez mais por entre um “governo europeu” que surge como distante e estranho.

O Chega é um partido que, apesar de não ser populista em termos históricos, emite um discurso que fala da não participação do “povo” na condução do Estado. É o sentimento que ajuda ao que se designa por secessio plebis, isto é, o momento em que parte do “povo” se cansa de imposições sociais e políticas que lhe surgem como inúteis. Este sentimento começa por uma inércia aparente, pela não participação, pela baixa sindicalização, pela descrença das virtudes do associacionismo, pelo desencantamento face à autoridade das instituições, pela valorização do senso comum popular frente à cultura “epistémica” das elites, por uma cultura imediata, tudo significando uma recusa da “racionalização da existência”, da sua tecnofuncionalização. Da indiferença à recusa politicamente organizada vai um passo da espessura de um fio de cabelo, o que normalmente não é percebido pelos tecnocratas de serviço.

O Chega foi premiado pela incapacidade de os partidos catch-all, normalmente partidos sistémicos, abrangentes, interclassistas, lentos e burocráticos, satisfazerem o “mundo da vida” do ser humano normal da sociedade de hoje, que é maciçamente consumista a todo o tempo e acena com um consumismo mirífico para um cidadão abstrato que é tratado (e destratado) diariamente como indivíduo. O Chega encontrou alvos, explicações, causas e efeitos discursivos adaptados a uma sociedade atomizada, monossilábica, secularizada e descrente.

Por fim, o Chega conseguiu igualmente tingir o seu discurso de acordo com um certo ambiente epocal de crise, que cria no inconsciente coletivo um ambiente de hostilidade latente, relativamente ao qual parte da sociedade de massas reage através do reforço de sentimentos de segurança e de necessidades de certezas no quadro de um mundo que surge, paradoxal e simultaneamente, como incerto num mercado de oportunidades, mas de risco num mundo agressivo e privado de sentido para a fragilidade dos seres humanos.

Mas, como a política se constitui enquanto dialética de encontros e desencontros, gerando novos e diferentes efeitos, todos os partidos irão desempenhar papéis no âmbito de uma incerteza estrutural, gerando novas dinâmicas. A grande dificuldade é que o tempo urge, mas a complexidade exige reflexão.

Como esta tensão vai fazer girar o pêndulo da História, é problema a seguir por toda a comunidade politicamente organizada, isto é, nós.

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