Diário do Alentejo

Festival B: António Paisana evoca Leonel Borrela

02 de junho 2019 - 17:25
António Paisana foi um dos oradores na homenagem a BorrelaAntónio Paisana foi um dos oradores na homenagem a Borrela

Texto António Paisana

 

Conheci Leonel Borrela em 1981, por ocasião de uma exposição colectiva, no espaço do INATEL, em que participavam, além de nós ambos, um jovem médico em serviço na periferia, José Manuel Martins e o jovem Joaquim Caetano, mais tarde director do Museu de Évora e recentemente nomeado diretor do Museu de Arte Antiga, em Lisboa. Figurava , também, o Francisco Alvito, hoje na Holanda. Mais gente haveria, que, agora, não sei identificar. Nem sei se o Jorge Castanho também lá estava, mas creio que sim.

 

Foi uma experiência interessante e particularmente enriquecedora, dada a proximidade que a cidade de Beja, e as circunstâncias da época, nos proporcionavam. Constatámos como eramos diferentes uns dos outros, nos temperamentos e nas escolhas de caminhos diversos. E continuo a pensar, agora, que nem sei se somos nós a escolher esses caminhos, ou se são esses caminhos que se nos impõem, tão profundamente o trabalho na pintura, como na arte em geral, mexe e mobiliza os estratos mais profundos das nossas almas.

 

Sei que nasceu, então, uma espontânea amizade entre o Leonel Borrela e mim, uma recíproca simpatia assente no mútuo reconhecimento, ocasionada pela convergência do interesse que, tanto ele, como eu, dedicávamos, e continuámos a dedicar, a algo que, mais do que um ofício, é um destino: a pintura.

 

A pintura é uma arte de infinitas possibilidades: permite caminhos os mais diversos, que deslumbram e perturbam quem a ela se entregue seriamente. Abre espaço a aventuras, a atrevimentos, mas, também a insatisfações e, por vezes, a arrependimentos. Pode tornar-se uma obsessão capaz de conduzir a sacrifícios que, não raramente, alastram para além da nossa vontade e chegam a atingir quem diária e intimamente vive connosco.

E é assim porque é uma arte exigente, que implica os sentidos, envolve o próprio corpo e a perícia das mãos, sempre atentas ao olhar, dirija-se ele para o que está fora, ao alcance da vista; ou para algo que nos move interiormente, algo, que nem sempre reconhecemos, mas nos impele à acto de pintar. Por isso é um campo que só frutifica em liberdade. Qualquer dogma que a essa liberdade se queira impor só a pode empobrecer ou destruir. Por isso a pintura, atrevo-me a dizer, sendo prática tão visceral, nunca irá desaparecer, deixar de ser actual, por mais sucedâneos que alguém pense que possam vir substituí-la.

 

Mas por ser assim é, também, uma arte que pode abrir condições de diálogo intenso e gratificante. Como o diálogo que mantive com Leonel Borrela ao longo de anos, embora espaçado pelos afazeres e pelas diferentes paixões que alimentavam o gosto pela pintura em cada um de nós. 

 

Quero, também, lembrar outra ocasião em que mantive com o Leonel um contacto continuado. Foi durante um curso de técnicas de gravura, creio eu patrocinado pela Fundação Gulbenkien, e que ocorreu há, seguramente, bem mais de vinte anos. Vi, então, como Leonel Borrela se empenhava nessa aprendizagem, atento às técnicas que mais se adequavam ao seu tipo de desenho e às características dos temas que o seduziam, empregando todo o tempo que conseguia amealhar para preparar e gravar as chapas, trata-las nos ácidos, e notei como se entusiasmava com os resultados à medida que estes se iam revelando, animado por uma inquietação quase infantil.

 

Como é bem sabido e hoje devidamente reconhecido, ele teve outras facetas,  para além da de pintor. 

Foi deste seu incessante interesse que ia surgindo a extensa série de artigos que publicou, designadamente no Diário do Alentejo e os vários blogs onde dava conta das investigações que realizava e dos trabalhos que o interessavam enquanto pintor. Lembro, a propósito, como as opiniões que emitia foram, por vezes, mal acolhidas e, inclusivamente, contestadas, frequentemente com má-fé, e como isso o fazia sofrer. Quando nos encontrávamos, Borrela falava-me dessas malquerenças, como, aliás, o fazia com outros amigos. 

 

Uma das características do temperamento dele era uma certa tensão entre timidez e rebeldia. Talvez por isso, em muitas circunstâncias, a sua reacção retinha-a consigo, para dela só falar em privado. Algumas vezes insisti com ele, no tempo em que ainda hesitava em publicar, para que desse à estampa as suas pesquisa que, a partir de aí, ficariam seladas com a sua assinatura. Decerto eu não seria o único a fazê-lo, mas custava-me deveras ouvi-lo relatar, magoado, que vários e várias estudantes, mestrandos ou doutorandos, que acorriam a pedir-lhe opiniões ou a consultar os seus trabalhos – matérias que tanta dedicação levara a construir – depois, ao publicarem as respectivas teses ou artigos académicos, nem sequer lhe referiam o nome como fonte dos conhecimentos que arvoravam, então, como se fossem fruto de investigações que eles, e não Leonel Borrela, tivessem feito. 

 

Com humildade e perseverança, porque era um lutador, Leonel Borrela conquistou a desenvoltura que o animou a frequentar a Universidade de Évora, onde se formou em História. Essa circunstância "oficializou" - diga-se entre aspas - a sua condição de investigador na área dos assuntos históricos, condição que, na verdade, já havia alcançado com a consistente prática que há tantos anos vinha desenvolvendo.

 

Ainda no âmbito destes interesses pelo nosso património, não posso deixar de mencionar a dedicação pela temática dessa notável figura das nossas letras que viveu a intensidade e a tragédia do seu amor aqui, em Beja: Soror Mariana Alcoforado, autora das cartas para o amante que lhe pagou o amor com a ingratidão. Decerto não vou exagerar se disser que Leonel Borrela deve ter sido um dos estudiosos que mais documentação reuniu sobre o assunto. Em boa hora se vai reeditar, esperamos que, agora, em melhores circunstâncias, o livro que escreveu sobre as epístolas e os amores da célebre monja. 

 

Mas, nesta breve evocação, não me irei reter mais nas áreas de actividade que acabo de referir, pois que, quanto a tais domínios, gente bem mais apetrechada do que eu saberá e poderá dar-lhes a devida atenção e comentar os produtos do seu trabalho.

Beja prestou homenagem a Leonel BorrelaBeja prestou homenagem a Leonel Borrela

Mais direi, agora, do que mais me toca: o Leonel Borrela como pintor. A pintura é uma arte da paixão e do olhar, creio tê-lo dito já. O temperamento, esse, é fundamental. Penso que Leonel Borrela era predominantemente um extrovertido. (Mas digo predominantemente, não exclusivamente.) Estava, também, sempre aberto às circunstâncias do quotidiano. Essas características parecem tê-lo destinado a ser um pintor figurativo e realista, atento aos aspectos do mundo exterior que mais o tocavam, que mais o ligavam à Terra (à terra entendida como Elemento); ao Céu (como extensão azul e solar do horizonte que não acaba senão na folha do papel), e à Vida, com predominância para a vegetação, para as árvores (lembremos os seus tão recorrentes sobreiros). Estava-lhe no sangue, por assim dizer. Porque Leonel Borrela possuía um temperamento sanguíneo, era um apaixonado, sempre pronto a abrir-se às emoções fortes. 

 

Atendamos, agora, à natureza e especificidade da sua pintura. Embora tenha realizado pintura a óleo, Borrela era visceralmente um aguarelista. Curiosamente, as marcas gráficas, a minúcia das pinceladas, a escala das imagens, as gradações de cor, o próprio uso da aguarela como técnica da sua eleição, curiosamente, dizia eu, a sua pintura era por regra suave, delicada e sem artifícios de que resultava um realismo claro e directo. E isto num homem que podia ser tempestuoso. Mas decerto a contradição é só aparente. Borrela possuía uma alma deveras sensível num corpo maciço e enérgico. Ver, para ele, seria um trabalho minucioso, e, direi, amoroso, atento à luz que se espalha nas paredes caiadas e ressalta a brancura e as faixas azuis do casario, a mesma luz que atravessa as folhagens, por vezes ásperas, dos sobreiros, ou coloria as flores nos alegretes. 

 

Sente-se, com frequência, uma vivacidade “nervosa” na marcação das formas, no bosquejo rápido, no registo dos pormenores de uma balaustrada, na textura ou nas irregularidades que mostravam a presença das pedras num paredão ou na torre tantas vezes por ele pintada do castelo da cidade. E creio poder dizer-se que o seu olhar sentia a nostalgia daquilo que já uma vez fora e, no presente, se ausentara, porque o homem assim quisera ou o tempo o destinara. Então o pintor recuperava essa presença, mas sempre com o cuidado do arqueólogo, sempre vocacionado para a esperada e verosímil realidade, sem transigências com possíveis efeitos que a imaginação, por si só, pudesse propor. O troço de muralha que já não existia, o passadiço que em tempos ali estivera, o recanto pitoresco ou o pátio cheio de serenidade e silêncio eram repostos de acordo com a imagem que a memória, ou uma velha gravura, ou a antiga foto, atestavam ter existido. A talho de foice relembro a reconstituição de uma Mértola com a muralha e a torre do rio, no porto do Guadiana, ou o moinho do cubo e a azenha do poço, próxima de Serpa.

Notemos que a aguarela é um procedimento apto para sustentar uma paisagem completa, com frescura e autenticidade, mas, também, para o registo rápido, sóbrio, dedicado só ao essencial. Leonel Borrela de ambas as possibilidades se servia, com a segurança de quem há muito as vinha utilizando.

 

Não sei se alguém já o disse - penso, até, que sim - mas hoje, ao vermos aguarelas de montes, de trechos de Beja, de aldeias brancas do nosso distrito, de sobreiros robustos, de pormenores arquitetónicos como chaminés, poiais, portais, escadas no exterior de casas de aldeia, a probabilidade de estarem assinadas por Leonel Borrela é muito grande. Se olharmos de perto reconheceremos o estilo.

 

Tenho saudades dele, e revejo-lhe os espantos, as passadas vigorosas. Recordo-o na Praça da República, no posto de venda dos jornais ou por lá perto, e de ele me dizer: "Ó Paizana, vê-me aquela antena do Rádio com uma altura que atenta contra a escala e a traça renascentista da igreja da Misericórdia". Ou, em tempo anterior ao último arranjo da Praça: "é uma desgraça, parece que nem têm olhos!"

 

Tenho saudades dele. Resta-nos o seu trabalho e a sua memória. Digamo-lo a todos, e hoje, de um modo especial, à sua viúva e aos seus familiares.

 

Homenageemos, pois, a sua memória. Assim Beja saiba preservá-la condignamente.

Comentários