Diário do Alentejo

Efeméride: Luís Amaro em encontros epistolares com ele

07 de maio 2024 - 12:00

Texto Martinho Marques

Foi em 2018 que morreu Luís Amaro. Com 95 anos, contados desde 5 de Maio de 1923, dia em que veio ao mundo, em Aljustrel.

Na sua morte senti que não estava preparado para escrever sobre ele ou que, havendo tanta gente importante e relevante a recordá-lo e a enaltecê-lo, eu bem pouco adiantaria com o meu depoimento. Creio ter dito ou ter escrito então ao meu amigo Francisco Colaço, um conterrâneo e amigo de Francisco Luís Amaro, que haveria de escrever mais tarde sobre ele, quando houvesse menos gente a recordá-lo e fosse mais necessário reacender a memória daquele homem modesto, simples, sensível e imprescindível para o conhecimento minucioso da faina editorial e literária do Portugal do seu tempo, que foi tempo muito extenso e pródigo em edições, das quais escassas lhe terão escapado. Também então devo ter dito ao Francisco Colaço que melhor era eu escrever depois de reler as cartas que possuía de Luís Amaro. Mesmo sabendo, na altura, que as tinha de ter em casa, os meus muitos papéis acumulados não estavam em estado de arquivo organizado ao ponto de me permitir achá-las de imediato.

Hoje não estou ainda preparado, mas, temendo que mais tarde ainda menos o esteja, por não ter por garantido que amanhã eu permaneço, vou tentar “criar” um texto, que desconfio que vai ser muito pouco original, porque nele, principalmente, me vou socorrer do que Luís Amaro me escreveu nas cartas que eu encontrei e que foram redigidas entre o verão de 1995 e o inverno de 2014. Elas são oito, de acordo com a tabela a seguir apresentada:

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 Início do encontro epistolar Estava-se em 1995, tempo em que o João Honrado coordenava o Suplemento Cultural do Boletim “Serpa Informação” que, entre 1994 e 1996 (creio que, se eu errar, não é por muito), incluiu a Breve Antologia de Poesia Social do Alentejo, organizada por Luís Amaro.

Na sequência de O Nómada Sentado, que fizemos e apresentámos em Beja1 nos finais de Maio desse ano, penso que terá sido o João Honrado que me sugeriu mandá-lo ao Luís Amaro, de quem possuía o endereço, devido ao relacionamento que com ele estabelecera, a propósito da organização da supracitada antologia. Achei óptima a ideia, até por não me ser fácil discordar do proponente, que ainda me chegou a levar livros, que mos ia vendendo e que depois me vinha trazer a casa o resultado das vendas.

Foi assim que me atrevi a mandar ao Luís Amaro, para além desse livro, o mais recente, também outro, mais “idoso” (Com o Lume nos Cabelos). Não me recordo nada das palavras que pus nas dedicatórias, mas devem ter sido aquelas que eu julguei adequadas a um homem com a importância que eu já sabia que ele tinha. Para além de poeta e de ter sido co-director e co-editor da revista literária “Árvore” (1951-53), tinha estado e estava ainda ligado à “Colóquio/Letras”, de que fora secretário de redacção (1971-1986), director-adjunto (1986-1989) e consultor editorial (1989-1996), cargo que desempenhava quando lhe enviei os livros.

A primeira das cartas e a forma como todas vinham escritas

As cartas de L.A. tenho-as por muito legíveis, apesar de espalhadas pelas páginas, muitas vezes em fragmentos, uma espécie de courelas, aproveitando o branco dos espaços, de forma que a carta contivesse ainda o que só posteriormente lhe ocorrera a ele (e à sua memória larga como poucas), mas que era lamentável se não viajasse ainda com as matérias que o papel até aí já tinha recebido.

À sua primeira carta (C1) encontro associado um ilustrado e, curiosamente, também um sobrescrito, que fora devolvido ao remetente, por me ter sido endereçado apenas com o meu nome, o nome da cidade e a indicação de que eu era poeta. Como se L.A. imaginasse que eu era tão conhecido em Beja, que bastaria o meu nome para a carta me vir a ser entregue. Ela foi-o de facto, mas mais tarde, dentro de outro sobrescrito, em que me vieram palavras com grande simpatia e deferência, que não me sinto bem a transcrever, e em que também alude

“ao nosso amigo João Honrado (que nunca vi mas já conheço razoavelmente…)”

e a essa

“antologia ‘inesgotável’ que até inclui poetas, camaradas nossos, analfabetos! (Aquele que desencantei do Cerromaior, José da Graça Cabrita, chegou a lembrar-me, pelo tom dorido, o melhor Bernardim…)”2

E terminava, dizendo:

“Oxalá o J.H. continue a orientar o Suplemento! O E. Olímpio andava preocupado com este nosso amigo…”

Nessa carta (C1) sugeria-me também enviar à Colóquio/Letras, ao cuidado da Dr.ª Joana Varela, um exemplar d’ O Nómada Sentado,

“mas sem dedicatória, pois se destina ao crítico”.

Devo ter obedecido, até porque a apreciação foi feita (embora, que eu saiba, nunca publicada) em texto de Maria Luísa Leal, escrito no mesmo ano e de que tenho uma cópia.

 

A sua preocupação com um poeta de trazer por casa

Não vou seguir, carta a carta, as suas revelações, confissões ou testemunhos. Penso ser mais indicado dividir o que se segue por temas, embora, para pôr termo à questão da relação d’ O Nómada Sentado com a “Colóquio/Letras”, tenha de já referir que Luís Amaro nunca esqueceu a retenção da crítica ao meu livro e várias vezes lamentou o caso, chegando a penalizar-se pelos sucessivos atrasos (até porque só em 1996 deixara de ser oficialmente consultor editorial da Colóquio/ /Letras), mas esperando sempre que terminassem os números especiais da revista (dedicados, por exemplo, ao Nobel de Saramago e à obra de David Mourão-Ferreira, entretanto falecido) para a recensão por fim lá poder aparecer. Numa das cartas (C3), sete anos depois do livro publicado e do início do nosso carteamento, lamentando uma vez mais todo o atraso havido até aí, e porventura atraso para sempre, escrevia-me, talvez delegando a responsabilidade do atraso em quem de facto mandava:

 

“Mas, apesar das relações de estima que mantemos, Joana Varela é dona da revista ‘Colóquio/Letras’, depois (e já antes) da morte de David Mourão-Ferreira”

 

Não sei bem como lho disse, mas sei que o tranquilizei, dizendo que não se preocupasse, porque isso para mim contava pouco. Contentando-me em escrever, o aparecer era o menos. Melhor até talvez fosse viver desaparecido. O que me preocupava era ele preocupar-se. Só não cheguei a dizer-lhe que esse O Nómada Sentado, em 1995 (quando eu ainda enviava livros para jornais e televisões), foi mostrado e considerado “livro da semana” no programa “Ver Para Ler”, que a RTP transmitia nesse tempo (ainda estou para saber como é que um livro quase artesanal, apesar da beleza dos desenhos do Paizana, pôde alcançar essa montra).

Na sua segunda carta (C2), agradecendo entusiasticamente o envio de Súmula Telúrica, que, com pinturas de António Paizana, fizemos aparecer em 2001, chegou a dar-me uma lista de críticos e/ou poetas consagrados seus amigos, com nomes muito sonantes, alguns dos quais já não estão hoje entre nós, com respectivos endereços, convidando-me a enviar-lhes esse livro. Nunca lho disse, mas não fui capaz de me valer das suas preciosas recomendações. Que direito tinha eu de ir roubar tempo a quem devia ter mais que fazer do que ler um poeta provinciano e afastado das letras e dos locais capitais? Embora L.A. me chamasse a atenção para os

“que vivem na Província, silenciados na chamada capital… meramente geográfica, não do Espírito.” (C2)

 

Um confessor também de dissabores

Em determinada altura, confessava ter sido recebedor de

“violentíssimas porradas epistolares: quis servir, e compreenderam-me ao contrário…” (C4).

Tinham-lhas enviado de Carreiras/Portalegre, a propósito da obra poética de Mário Beirão, afinal mal recebida por alguém que dirigia um suplemento do jornal “O Distrito de Portalegre” (“da diocese: eles dizem-se católicos, cristãos!”), para o qual elaborara uma página antológica do poeta.Sobre o poeta em questão, lembrava na mesma altura que Jorge de Sena,

“afirmando que M.B. escrevera ‘algumas das mais belas poesias com que uma literatura pode contar’, recuava simultaneamente: M.B. ‘não é dos que ficam…’”

E acrescentava:

“Ele é que ficou para a eternidade – ele, Jorge de Sena, autor de umas Dedicácias que mais valera ficarem inéditas para todo o sempre, porque são um nojo. Teriam chegado a Beja, essas ‘poesias’ satíricas que jaziam inéditas no espólio do inegavelmente grande Sena de quem, aliás, tive a honra de ser, desde sempre, amigo?” (C4)

 

Não creio que lhe tenha respondido nem que, até esse momento, eu tivesse lido o livro (livro póstumo, acrescente-se), que por acaso acabou por chegar um dia a Beja e também a minha casa, sem que a sua leitura me tivesse levado a contrariar a apreciação de L.A. .

 

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O poeta e os seus livros

A maior parte da obra que criou foi dedicada à dos outros.Mas também teve obra poética, que dispersou por revistas e juntou em (poucos) livros.O seu primeiro livro de poesia, Dádiva, saiu em 1949, ano do meu nascimento. Não tive oportunidade de ler ou ver sequer essa edição, mas li o Diário Íntimo, que a conteve, a melhorou e também a ampliou, quer na primeira edição, de 1975, quer na segunda, de 2006, da &Etc, que é aquela que possuo.O exemplar que ele me ofereceu [“este livrinho antigo mas talvez recuperável ainda (continua “em obras”...”)] tem data de 8 de Agosto de 2008 e é assinado pelo meu “quase conterrâneo” Luís Amaro.Que aquele livro estava sempre “em obras” confirmava-o uma nova edição de Diário Íntimo, Dádiva e Outros Poemas, Com trecho epistolar inédito de Jorge de Sena, em edição Licorne, de 2011, enviada de Massamá, “com um abraço admirativo e encantado” e assinado junto à data de 15 de Novembro desse ano.A sua poesia era contida, intimista. Além de muito pouco a pôr em livros, ele não era dado a dar-lhe saliência. Mas ela salientava-se, ao ponto de figurar em várias antologias.

Sobre o seu íntimo e na mesma carta (C4) em que ele me confessava os dissabores que acima deixei descritos, escrevia-me também:“Meu caro, a vida é mesmo assim, uma grande baralhada de encontros/desencontros – já não falando do pior dos desencontros: aquele que existe em certos seres com a própria alma – o meu caso.”

“Recomendo-lhe a tese, monumental e saída há anos, do seu quase homónimo F.J.B. Martinho sobre a Poesia dos anos 503: lá figura este “poeta bissexto” que é o L.A.”

Desse poeta “bissexto”, a preciosa edição da &Etc inclui, em Marginália, excertos das muitas cartas de resposta ao seu livro Dádiva e os muitos ilustres que as assinam logo permitem fazer uma ideia dos relacionamentos que já, nos seus 26 anos, Luís Amaro mantinha.

Deixem-me só enumerar alguns, começando por Sebastião Artur (da Gama), que lhe escreveu da Estalagem de Santa Maria da Arrábida, de um local que muito frequentei entre 1974 e 1980 e em 2 de Outubro de 1949, dois meses e pouco antes de eu próprio chegar ao mundo. Além de Sebastão da Gama, escreveram-lhe, entre outros: Mário Beirão (em Setembro de 1949); Castelo Branco Chaves (em 15 de Dezembro de 1949, exactamente no dia em que nasci); Jorge de Sena (em 4 de Fevereiro de 1950); Teixeira de Pascoaes (em 20 de Março de 1950); Júlio Dantas (em Maio de 1950); Jacinto do Prado Coelho (em 29 de Maio de 1951).

Embora a minha intenção seja falar muito mais do homem Luís Amaro do que da sua poesia, tenho por pecaminoso falar de um poeta sem lhe citar poemas. Daí que não me sinta bem comigo se não transcrever aqui ao menos dois dos seus versos, dos que mais se me impõem e capturam, e que ele manteve em todas as edições da sua obra poética:

“E tanto que eu quiseraviver em primavera!”

Para acabar esta breve abordagem à poesia de Luís Amaro, em vez de acrescentar palavras minhas, prefiro escolher daquelas que outros poetas lhe escreveram logo no tempo em que Dádiva nasceu e eu ainda não tinha (ou pouco tempo tinha de) nascido. Sobre esse livro, e nas datas que acima se mencionam, escreviam, por exemplo, Mário Beirão e Teixeira de Pascoaes. O primeiro considerava:

“Está impregnado de essência poética, do olor da Verdade, – o que não é vulgar em livros de versos, onde, em geral, há mais literatura (se, acaso, há literatura!) do que poesia.”

E o segundo exclamava:

“É da melhor Poesia moderna! E, sendo moderna, não ofende certas leis imutáveis da Poesia, isto é, o que nela é música. E poesia sem música o diabo que a leia!”

 

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Outros de que ele se lembra e enaltece O seu respeito pelos outros e a sua atenção aos outros encontram-se com frequência ao longo das várias cartas. Naquela que me escreve a acusar a recepção de Súmula Telúrica (C2) não esquece

“o seu amigo António Paizana, um grande artista”.

E, reparando na sua biografia, não se absteve também de relembrar alguém que ele tinha encontrado e que em si permaneceu:

“Na respectiva nota biográfica do autor, vejo, ao alto, o nome de um dos homens mais educados que conheci ao longo da minha vida de tarimbeiro das letras (empregado que fui, quase 30 anos, na Portugália Editora): o artista Álvaro Duarte de Almeida, a que, por ser da velha escola, outros, que depois se assenhorearam da Editora, deixaram de dar trabalho. Morava em Alenquer, e era uma pessoa tão modesta quanto delicada. Recordo-o com saudade. Que hábil desenhador ele era!” (C2)

Na sua terceira carta (C3) perguntava-me se conhecia Pedro Albuquerque que

“publicou no D. do Al. alguns artigos ou crónicas nada vulgares, absolutamente excepcionais para a estreiteza do meio”, e de que “vagamente” sabia, “talvez pelo José Luís Soares”, que “veio para Lisboa e trabalhava nos serviços culturais da Câmara.”

A propósito do livro Com o tamanho do tempo – por Beja, onde são maiores as horas e os horizontes (obra em dois tomos, de 2004), além de agradecer a um autor, também referia o outro, António Cunha,

“cujas fotografias retratam, mais do que o físico, a alma do Alentejo” (C7)

E em outras cartas recordava outros:

“Sabe que ainda conheci de vista, o Prof. Bento de Jesus Caraça, talvez na Rua do Carmo onde era a Livraria Portugália para onde fui, de Estremoz, em Setembro de 1941? E recordo o poeta-médico Armindo Rodrigues, frequentador diário da Livraria, comentar a Biblioteca Cosmos a 3$50 cada volume: ‘vende-se como galinha!’” (C5)

 

Por Beja e por AlbernoaAo longo das várias cartas são muitas as referências à sua presença em Beja e a escritores que nela conheceu:

“Fiquei contente por ver Mário Beirão e Manuel Ribeiro – que, teria eu quinze anos, contemplei, emocionado, na ‘minha rua’ Miguel Bombarda4 (ou do Hospital Antigo), amigos ambos – desfilarem no seu Roteiro: não podia deixar de ser assim! Embora Mário Beirão se me queixasse, um dia, de que João Villaret, num recital em Beja, omitisse o Poeta… e Poeta maior, acrescento. Mas de quantas injustiças mais não terá ele sido vítima, por ter escrito o hino da Mocidade – que, cantado milhares de vezes, nunca rendeu um tostão ao autor (que disso me informou).

Ainda sou do tempo do Liceu na Praça da República. Empregado na Livraria Académica (do Dr. Silvino, que tragicamente morreria). Recordo-me de que a loja beneficiava dessa vizinhança. Não durante muito tempo, já que assisti à inauguração do Liceu Diogo de Gouveia, em que o Poeta recitou, para si mesmo (tinha uma voz baixa sussurrada…), versos seus… Mário Beirão era uma sombra de si mesmo, e decerto o Fernando Pessoa, seu companheiro de juventude, o seria também: a altissonância não era com eles!” (C7)

E as referências estendem-se a Albernoa,

“terra de Manuel Ribeiro, escritor criminosamente esquecido – como tantos de igual nível – e que teve, outrora, altíssimo prestígio que o Prof. Gabriel Rui Silva5 procurou recuperar (louvado seja o nosso amigo epistolar!)” (C8)

“Passei muitas vezes por Albernoa, de Aljustrel, minha terra, para Beja, quando, em 1948 – um ano antes de o meu caro poeta nascer –, ia fazer pneumotórax ao consultório médico do Dr. Covas Lima. Seis anos depois, tive uma recidiva, que a estreptomicina venceu com êxito. ‘Males de Anto’… que foram meus.” (C8)

A este propósito, recordo que Sebastião da Gama morreu em 1952, depois de ter contraído uma tuberculose óssea6, numa altura em que a estreptomicina ainda não estava vulgarizada em Portugal e que acabou por fazer toda a diferença entre a sobrevivência de Luís Amaro e o falecimento prematuro de Sebastião da Gama (nos seus 27 anos).

 

Numa “floresta de enganos”Várias vezes confessava a azáfama em que andava, a responder a tarefas e a solicitações constantes:

“Nem supõe a ‘floresta de enganos’ em que me perco! Papéis por todo o lado – a minha mulher apavorada com esta desordem reinante em casa (a casa, em cujo asseio as Senhoras se aprimoram quanto possível…)” (C5)

“Um amigo me ‘aguarda’ na Holanda, duas Senhoras me solicitam, bibliograficamente falando, da Madeira, outra de Roma – e, para cúmulo, da Biblioteca Nacional me pedem ajuda, ou colaboração, nas comemorações do João Gaspar Simões – centenário e que muito bem conheci –passe a presunção… (Lembre-se que ando nisto há sessenta e um anos!)” (C5)

“Reclama-me uma papelada infernal: colijo textos sobre João Gaspar Simões (para a Revista da Bibl. Nacional comemorativa de efemérides presencistas) – nada de criativo, tudo meramente bibliográfico… e urgente, ainda por cima!” (C6)

E, mostrando mais um dos afazeres a que estava dedicado, avisava-me (em C4):“Prepare-se para receber, mais semana menos semana, Poemas de Deus e do Diabo que empolgaram os meus 16 anos bejenses, numa casa-pensão (com imagem religiosa na frontaria) frente ao antigo Hospital”

Embora não a tenha ainda achado (encontro apenas a 7.ª, de 1969), admito que fui recebedor dessa 12.ª edição7, revista “com muito amor” por Luís Amaro e contendo um posfácio por ele anunciado, não sei se muito diferente do que consta na edição que encontrei.

 

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A sua bibliofilia e a revista “Rodapé” 8 Bibliófilo inveterado, era óbvia a sua paixão, não apenas pelos textos, mas pelo próprio fulgor das edições, pelos livros como obras de arte, não somente da arte literária, mas também como peças de artes plásticas.Não admira, por isso, que a revista “Rodapé” tenha sido alvo da sua “cobiça”. Leia-se o que ele escreve na sua quinta carta (C5):

“Escrevi há tempos ao Dr. Figueira Mestre, a pedir-lhe o favor de me enviar os números que me faltam da excelente revista que em Beja se publica (os Arquivos estão suspensos há tanto!). Mas, como sempre, nem resposta obtive – e todavia devo ao director, por intermédio do nosso Francisco Colaço, a publicação de certo poema dum poeta queluzense, a Rui Cacho dedicado. Da Rodapé tenho, salvo erro ou omissão, os números 0 – 2 – 4 – 5 – 6 – 7 – 8, devidos, em grande parte, à amizade de Fco. Colaço. Ora a minha bibliofilia não descansa, ainda que sem tempo de leitura.”

Já agora, ainda aponto que, para eu ajudar a chegar à “Rodapé” (o que acredito que fiz), enviou-me ele dois poemas de Avelino de Sousa, antigo aluno da escola que foi o Liceu de Beja e mais tarde professor (de Filosofia) noutras escolas, de que eu há muito não sei e que em 1986 chegou a ser vencedor do Prémio Revelação de Poesia APE. Começou a tratar do assunto na carta designada por C5 e na seguinte (C6) acrescentava:

“Se a Revista bejense lhe publicar, juntos, os dois poemas, não faz nenhum favor ao poeta, nem a si nem a mim: seria um acto de justiça pura!”

 

Na Biblioteca Municipal de Beja quando era noutro local Quando andou por Beja em jovem relacionou-se também (e era inevitável) com a Biblioteca Municipal que, nesse tempo, estava situada no local que ele mencionava:

“Cheguei a conhecer, uma única vez, na Bibl. Mun. de Beja, instalada então numa ala do Convento da Conceição, o Sr. Manuel Ribeiro (e, dessa vez, Julião Quintinha e, doutra vez, o grande Poeta Mário Beirão, até a passar na Rua Miguel Bombarda, onde eu vivia, com Manuel Ribeiro: grandes amigos, que eram ambos religiosos muito especiais)” (C8)

 

Conclusão Ainda lhe cheguei a enviar, em finais de 2014, os dois primeiros livros da loucura-aventura a que me dei e a que chamei Obra em sombra: Gerúndio e Desenvenenamentos, que muito me agradeceu. E eu também lhe fiquei agradecendo o muito tempo do seu pouco tempo que foi gastando comigo e a atenção que dedicou a ler um poeta incógnito que

“não adere a recentes modas de transformar a poesia numa caricatura do verso: ‘a poesia é pouco sem o ritmo/ porque é filha da música…’” (C2)

Não obstante serem numerosos os assuntos abordados nas suas extensas cartas (não esqueço que um deles era a procura de notícias sobre um seu familiar, de que perdera os caminhos), creio que deixei aqui o que nelas achei de mais significativo sobre essa grande pessoa e meu “quase conterrâneo”, com quem nunca me encontrei fisicamente, mas que depositou em mim rastos de simplicidade e de humanidade honesta, que mo acrescentaram muito, para além do que eu já sabia dele como poeta e homem de cultura, cujo autodidactismo ele fazia questão de confirmar:

“eu nunca frequentei sequer a escola comercial, já em Lisboa!, como o José Saramago fez” (C4)

Mesmo assim (ou quem sabe se não por isso mesmo?), ele esteve no tempo e nos lugares em que viviam os livros e tinha uma paixão inexcedível por eles, de que sabia como nenhum outro. Não era por mero acaso que Vasco Graça Moura o considerava “a pessoa que mais sabe em Portugal sobre livros e escritores” 9.Eu fiquei a considerá-lo muito superior a isso e, dizendo-o da forma sugerida pelo reencontro com as suas cartas, apenas peço que me compreendam, por aqui não ter podido deixar de falar de mim, alguém que já me acompanha há mais de 70 anos, de que não soube nunca libertar-me e de que, a bem dizer, eu desejava não me libertar ainda.

Novembro de 2023

1 - O livro foi aqui composto e impresso (na tipografia Pentagráfica, sediada então no Parque Industrial), tendo sido terminado na Encadernadora Progresso, da Rua da Misericórdia, onde a D. Isabel, que uniu os vários cadernos e ultimou o volume, dizia ter sido o livro em que todos perderam.2 - A poesia atribuída a José da Graça Cabrita pode ler-se na íntegra nessa obra de Manuel da Fonseca.3 - Deveria referir-se à obra Tendências Dominantes da Poesia Portuguesa da Década de 50, de Fernando J. B. Martinho.4 - Nome então aplicado à rua que conduzia ao antigo Hospital da Misericórdia de Beja e que como tal é designada no II volume do velho Guia de Portugal, de 1927.5 - Autor de vários estudos literários, entre os quais uma biografia de Manuel Ribeiro (Manuel Ribeiro, O Romance da Fé, Licorne, 2010).6 - Segundo informação da viúva, D. Joana Luísa da Gama, com quem falei em Agosto de 1982 no Portinho da Arrábida.7 - Que essa era a 12.ª edição daquela obra já ele me tinha dito noutra carta.8 - Revista da Biblioteca Municipal de Beja José Saramago, publicada entre os anos 2000 e 2003.9 - https://www.bnportugal.gov.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=807%3Amostra-luis-amaro-7-maio&catid=163%3A2013&Itemid=836&lang=pt/

O autor escreve de acordo coom a antiga ortografia

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