Diário do Alentejo

manifestação

05 de maio 2024 - 12:00
Historiador Constantino Piçarra considera que, “pela primeira vez, talvez, ao longo destes 50 anos, a democracia corre alguns riscos”Foto | “Diário do Alentejo”/Arquivo

Assinalaram-se na última quarta-feira os 50 anos do primeiro 1.º de Maio celebrado em liberdade, após 48 anos vividos em ditadura. Por todo o País, nesse primeiro dia de maio de 1974, as pessoas saíram à rua para festejar, e Beja não foi exceção. É, provavelmente, “a maior manifestação a que alguma vez a cidade assistiu”.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

“Beja viveu ontem a maior e mais autêntica manifestação popular de sempre (…). Milhares (quantos?) de pessoas se concentraram na capital sul-alentejana para homenagear as forças armadas e festejar a queda do fascismo, essa tenebrosa nódoa que manchou a História de Portugal, agora redimida. Centenas de dísticos (impossível se torna descrevê-los) nas mãos de jovens e velhos, de camponeses e operários, de estudantes e empregados, se agitaram horas a fio, numa frenética mas sempre ordeira exaltação do momento histórico que a Pátria vive”, noticiava o “Diário do Alentejo” (“DA”) na sua edição de 2 de maio de 1974, um dia depois do primeiro 1.º de Maio, Dia Internacional do Trabalhador, celebrado em liberdade, após 48 anos vividos em regime de ditadura.

E prosseguia: “Desde cedo a cidade se começou a movimentar com um invulgar aspeto festivo, tanto mais que todos os estabelecimentos tinham encerrado as portas”. A concentração (na foto), que teve lugar no largo em frente à piscina municipal, teve início às 15:00 horas, mas, adiantava o “DA”, “uma hora antes já grande multidão se aglomerava junto ao palanque formado pela carroceria de duas camionetas, e ornamentado com vasos de flores, predominando os cravos vermelhos que, aos milhares, se viam também no peito de trabalhadores, operários, estudantes, gente do povo”. Aliás, a concentração, como noticiava o “DA” a 30 de abril, estava inicialmente prevista para a praça da República, “mas, em virtude da paralisação das atividades laborais e fecho dos estabelecimentos”, devido ao anúncio de feriado nacional, era de prever que o número de manifestantes fosse “superior à capacidade do local em princípio escolhido”. À chegada dos “elementos das Forças Armadas”, referia ainda o “DA”, “a multidão rompeu em vibrantes aplausos, agitando dísticos de vitória, enquanto a banda de Cuba dava os primeiros acordes do hino nacional, e, num simbólico gesto de paz, amor e igualdade que se deseja para todo o povo português, columbófilos bejenses efectuaram uma largada de pombos”.

António Machado, então com 19 anos, recorda-se bem de ver o largo em frente à piscina “imensamente cheio”, não havendo “espaço para mais ninguém”. O bancário reformado natural de Beringel conta ao “DA” que foi à manifestação com alguns rapazes “da terra”, para verem “o ambiente” e gozarem “aquele momento de liberdade”. Tudo era novidade, sublinha, adiantado que “as pessoas estavam muito satisfeitas” e que “[foi tudo] muito cordial”.“As pessoas tinham saído de uma repressão e estavam muito vivas, muito contentes com tudo o que se estava a passar. Eu e os rapazes da minha idade tínhamos ido em final de janeiro à inspeção a Évora para irmos para a tropa. Estávamos apurados e aguardávamos a qualquer momento sermos reintegrados no exército e depois, com as guerras do Ultramar, já se sabia o que é que nos esperava… Estávamos todos com receio disso, como era natural, e com aquela liberdade ainda nos manifestámos melhor”.

 

“Manifestação impressionante” O 1.º de Maio de 1974, sublinha, por sua vez, o historiador Constantino Piçarra, “é uma manifestação imensa da população portuguesa dando vazão à sua enorme alegria pela conquista da liberdade e pelo derrube da ditadura e isso também sucede em Beja”. Aliás, frisa, a capital de distrito “tem a sua primeira manifestação de júbilo pelo fim da ditadura no dia 27 de abril aquando da prisão dos agentes da PIDE/DGS”, que “é quando o povo de Beja toma consciência, se me é possível expressar desta maneira, de que as coisas estavam a mudar e de que a liberdade era uma realidade no nosso país”. No 1.º de Maio, continua o investigador, que também participou na manifestação, tinha então 15 anos, afluem a Beja “centenas e centenas de pessoas dos concelhos limítrofes, nomeadamente, Vidigueira, Cuba, Ferreira do Alentejo”. É, provavelmente, “a maior manifestação a que alguma vez a cidade de Beja assistiu”, afirma. “Para se ter uma ideia, a multidão não só encheu completamente o largo à frente da piscina, como as ruas adjacentes. A rua da biblioteca municipal estava repleta de pessoas que se concentram para ouvir os discursos das forças da oposição que se encontravam organizadas no MDP/ /CDE [Movimento Democrático Português/Comissão Democrática Eleitoral], que juntava os democratas e os antifascistas”, especifica.

Após os discursos, a manifestação “desenvolve-se pelas diferentes ruas da cidade com aqueles que não estavam na manifestação abrindo as janelas e vendo as pessoas a passar, entoando as palavras de ordem na altura”, nomeadamente, “O povo unido jamais será vencido”. Constantino Piçarra reforça que foi “uma manifestação impressionante, onde há uma comunhão geral de um povo – as divisões mais acentuadas do ponto de vista político vêm depois – que, junto, comemora esse advento da liberdade e isso é uma coisa que as palavras têm dificuldade em traduzir”.

O historiador recorda-se de “coisas completamente novas”, e que o marcaram, como, por exemplo, “ver homens e mulheres, rapazes e raparigas, desconhecidos, e que se juntaram naquele sítio, desfilarem de mãos dadas”. Mais “do que uma manifestação política, era uma manifestação de afetos, era como se as pessoas se reencontrassem e em comunhão celebrassem essa coisa extraordinária que é a gente poder dizer o que pensa, a gente poder ser livre”.Instituído em 1891, o Dia Internacional do Trabalhador, frisa ainda o investigador, foi, por exemplo, durante o período da I República, “um marco importante na luta dos trabalhadores [em Portugal] e em Beja também”, sendo que na capital de distrito era comemorado com diversas manifestações, destacando-se “três grandes iniciativas”: “Uma romagem ao cemitério em homenagem aos dirigentes do movimento operário, um cortejo pela cidade ao som da banda de música e em que os manifestantes iam passando pelas sedes das diferentes associações, dos caixeiros, dos sapateiros, dos assalariados rurais, de classe dos trabalhadores mistos – sendo que no 1.º de Maio de 1914, pela primeira vez, uma delegação de mulheres costureiras desfila na cidade de Beja dando vivas à classe operária –, terminando normalmente com uma atividade cultural, constituída, por exemplo, por uma conferência de um convidado – muitas vezes Gonçalves Correia, fundador da Comuna da Luz, assim como homens e mulheres do Partido Socialista, que dominava, fundamentalmente, o movimento operário em Beja”. A seguir ao “advento do Estado Novo”, o 1.º de Maio “passa a ser proibido” e acaba por ser “um pouco comemorado por todo o Alentejo com a fuga dos trabalhadores para o campo, onde se juntam, isto de uma forma geral, o que não invalida que não fosse comemorado pelos trabalhadores mais organizados – e aqui a grande organização é o Partido Comunista Português, que atravessa na clandestinidade todo o período do Estado Novo”. O feriado nacional é reposto pela Junta de Salvação Nacional “logo imediatamente a seguir ao 25 de Abril”.

Meio século volvido, Constantino Piçarra considera que, “pela primeira vez, talvez, ao longo destes 50 anos, a democracia corre alguns riscos – há sinais e sintomas altamente preocupantes”, mas, “claro que existe uma força dentro da sociedade portuguesa completamente maioritária na afirmação dos valores de Abril, liberdade de reunião, liberdade de expressão”. No entanto, sublinha, o 25 de Abril implicava também “a democracia económica, a democracia social, e, nesses dois aspetos da vida coletiva, houve avanços e retrocessos e a situação não é, de certeza, aquela que se imaginou nos tempos subsequentes ao 25 de Abril de 1974”, conclui.

 

Trabalhadores “não podem baixar os braços” A coordenadora da direção regional do Alentejo do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses sublinha que, quando se assinalam os 50 anos do primeiro 1.º de Maio em liberdade, e que “veio abrir caminho aos direitos, às reivindicações e à igualdade para os trabalhadores”, é importante relembrar “que estes direitos não estiveram sempre presentes” e que é necessário “honrar as pessoas que lutaram por eles”. “Temos que lutar para não voltarmos para trás, porque a tendência tem sido perdermos, pouco a pouco, os direitos que temos”, adianta Carolina Ribeiro, reforçando que “os trabalhadores não podem baixar os braços”.

“Neste momento a preocupação é constante, porque se não forem os trabalhadores a defenderam os seus direitos, estes não caem do céu. Neste momento tudo o que são direitos laborais são conquistados pelos trabalhadores através das suas lutas”, frisa, por seu turno, o presidente da direção do Sindicato dos Professores da Zona Sul. Manuel Nobre salienta que “muito há para continuar a lutar” e que, com a atual “organização das forças políticas na Assembleia da República, esta luta terá de ser mais intensa”. “Normalmente quando a direita está no poder – e a história nos tem dito isso –, há sempre retrocessos ou tentativas de ampliar o fosso entre o poder dos patrões e a força dos trabalhadores que, normalmente, resulta em salários baixos, em precariedade, em reformas baixas, em direitos que são retirados aos trabalhadores”.

O coordenador regional da direção regional de Beja do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local e Regional defende, igualmente, que “a luta tem de ser muito mais afincada”. “Vemos com alguma apreensão os tempos próximos. Já vimos que quando tivemos maiorias absolutas de direita na Assembleia da República – e estou a lembrar-me da altura da troika – os trabalhadores perderam salários, perderam direitos. Percebemos que não se avizinham tempos risonhos para os trabalhadores, para a sua valorização”, acrescenta Osvaldo Rodrigues.

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Comemorações em Aljustrel, Mértola e SerpaA comemoração do 1.º de Maio em Aljustrel, adiantava o “Diário do Alentejo” a 2 de maio de 1974, “deu lugar”, naquela vila, “à maior manifestação de patriotismo de que há memória”. Segundo referia o “DA”, “pode dizer-se que toda a população de Aljustrel saiu para as ruas, para se associar vibramente ao patriótico acontecimento”. A concentração teve lugar “na avenida Salazar”, dirigindo-se, depois, “o grande cortejo, sempre com a maior compostura”, até ao edifício do Sindicato dos Mineiros, onde foram proclamadas “várias alocuções de homenagem às Forças Armadas e de exaltação da Democracia”. Na edição do dia seguinte referia-se que “manifestação grandiosa, mesmo sem preparação e da última hora, foi a que se realizou em Mértola, neste pela primeira vez autêntico 1.º de Maio depois de 48 anos de escravização fascista”. Percorrendo as ruas da vila e “entoando a canção ‘Grândola, vila morena’ e o slogan ‘Povo unido jamais será vencido’, os manifestantes “estacionaram durante mais de uma hora no centro da vila”, onde foram proferidos vários discursos. A manifestação terminou em frente ao cineteatro, “vitoriando as Forças Armadas, o general Spínola, a Liberdade, a Democracia e Portugal”. Já em Serpa, noticiava também na edição de 3 de maio, “centenas de pessoas concentraram-se junto ao edifício dos Paços do Concelho (…) empunhando muitas delas dísticos alusivos à festa do 1.º de Maio, pela primeira vez realizada nesta terra alentejana”.

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