Diário do Alentejo

Uma carga de trabalhos!

12 de março 2023 - 12:00
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Texto José D'Encarção, arqueólogo 

 

Bem, uma carga de trabalhos daqueles pesados, que nos obrigam a alombar sob o seu peso, não será verdade, até porque, lá diz o povo, quem corre por gosto não cansa, e nisto da investigação histórica ou uma pessoa gosta mesmo ou o melhor é deixar da mão.

 

Diante do monumento hoje escolhido para a nossa conversa, optei por não deixar da mão, ainda que não tenha conseguido resolver tudo quanto queria. Escolhi-o, porém, para contar que nem tudo são rosas a perfumar os nossos caminhos: temos, por vezes, escolhos a contornar, mistérios que muito gostaríamos de ver desvendados e não conseguimos deslindar, afinal!

 

Perguntar-se-á – e adianto já a reacção final do leitor – que interessa isso agora quando tão outras são as nossas preocupações quotidianas? É verdade. Mas se todos os dias nos derem a mesma sopa, acabamos por enjoar; se passarmos o santo dia a desempenhar a mesma tarefa, qual autómato numa engrenagem de fabrico em série…

 

Vejamos, então, o monumento hoje em apreço.

 

A decoração Identificou a dra. Manuela Alves Dias no museu de Beja – actualmente Museu Regional de Beja/Museu Rainha D. Leonor – o que, na publicação de 1983, designou por “fragmento de cipo funerário”, dando-o como achado na herdade do Lamarim, freguesia de Baleizão. Não tinha, na altura, número de inventário nem havia mais informações acerca da sua proveniência.

 

Houve ocasião de o rever, de modo que, atendendo às dimensões – 78 centímetros de altura máxima x 43/38,5 de largura e 22 centímetros de espessura – se optou por o classificar como estela em jeito de ara. De mármore de Pardais, trabalhada nas quatro faces, é bem provável que se destinasse a ser colocada sobre um plinto, à cabeceira da sepultura.

 

Na verdade, todavia, o que mais chama desde logo a atenção é a decoração do capitel. O frontão triangular (de 34 centímetros na base e 18 de alto) apresenta a meio, em relevo, um elemento que já foi identificado como palma, folha ou pinha, ladeado por duas corolas hexapétalas. Sai de cada lado do frontão, simetricamente, um toro que ostenta na face uma corola de sete pétalas. Moldura de cuidado recorte separa o capitel do fuste, de que boa parte se perdeu; está mais completo do lado direito, em cuja face ainda é possível observar, também em baixo-relevo, uma pátera de cabo para baixo também não inteiro. O facto de ter a pátera faz-nos supor que teria, na face da esquerda, a representação de um jarro; ambos representam os objectos rituais da sepultura, uma vez que o cadáver era ungido com óleos balsâmicos que de um jarro se deitavam na pátera (espécie de prato precioso) para mais facilmente se proceder à unção.

 

Não é comum esta decoração nos monumentos epigrafados de Pax Iulia, o que leva a pensar ter o defunto merecido uma atenção particular: as flores ali esculpidas simbolizavam não apenas as flores que sobre a sepultura se colocaram na cerimónia do enterro mas em pedra eterna fixaram as que perenemente os seus entes queridos quereriam sempre ofertar-lhe.

 

Merece particular atenção o elemento central. A sua forma estilizada presta-se, como se disse, a várias interpretações. Uma folha parece o mais normal. Uma folha de palmeira mais ainda, se pensarmos que a palma sempre foi símbolo de vitória, neste caso de vitória sobre a morte. Cedemos, contudo, à tentação de ver aí a representação do tirso, pequeno bastão ornado de heras e pâmpanos, encimado por uma pinha. Usado pelo deus Baco e pelas ménades, as ninfas suas seguidoras, acabou por ser tomado como símbolo de eternidade. Alicia-nos esta interpretação, inclusive pelo seu carácter único entre os monumentos desta cidade romana.

 

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Modestina Tempo é, pois, de lermos o que foi gravado, não com muito cuidado (diga-se) na face dianteira do monumento. Uma escrita feita à mão levantada, isto é, sem rigor geométrico quer no tamanho das letras quer no intervalo entre elas e entre as linhas.

Está em latim, como é habitual, e foram usadas siglas e abreviaturas. Referimos, em título, “uma carga de trabalhos”. A ideia foi de chamar a atenção para a necessidade, como é o caso, de se tentarem adivinhar as letras que a fractura levou. Nem sempre é fácil e, aqui, a quinta linha está incompleta e faltam, seguramente, mais uma ou duas.

Apresenta-se a proposta de reconstituição e já se dão as necessárias explicações:

 

D(iis) M(anibus) S(acrum)

[M]ODESTIN

[A]E QVE

[V]IX(it) ANN(is)

[...]AVTIAS [?]

 

Temos, por conseguinte, a consagração aos deuses Manes – os protectores dos defuntos no Além e, por outro lado, o garante da inviolabilidade do sepulcro, por ser território sagrado.

 

Vem depois o nome da defunta, Modestina, um nome latino comum. Perdeu-se, na linha cinco, o número de anos que viveu. A palavra lida QVE não é o nosso “que”, mas está por QVAE, que significa “a qual”. Como AE soava E, amiúde na linguagem comum se escrevia QVE e não QVAE. “Vixit” é, em latim, a 3.ª pessoa do singular do passado do verbo “vivere” (pronuncia-se “vívere”), que significa “viver”; portanto: viveu.

 

Afinal, não foram assim tantos os trabalhos até aqui!... O pior é a actual última linha, onde estaria, no início, a indicação do número de anos vividos. Ficamos sem saber quantos. Poucos, se calhar. E havia que decifrar o que vem depois, mui possivelmente a identificação da pessoa que mandou fazer o epitáfio.

 

Propôs-se AVTIAS, que, na verdade, não parece levar a sítio nenhum. Isto é: do que se conhece da onomástica latina, essa terminação é estranha. Vimos, porém, que as letras foram gravadas sem grande precisão e, por isso, ocorre perguntar: e se, em vez de AVTIAS lermos AVITAS? É que, na verdade, as barras horizontais não estão lá muito claras. Sendo assim – e aqui entra também um pouco a fantasia do investigador… – ter-se-ia o problema resolvido: “avita” pode ter o significado de “avozinha” e o “s” pode ser a sigla de “sua”. E fora, então, a sua avozinha que lhe mandara lavrar o epitáfio! Desta sorte se explicaria também a feminina delicadeza que do gracioso conjunto inegavelmente se desprende.

 

Terá valido o trabalho!

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