Diário do Alentejo

A arte de bem receber!

27 de dezembro 2022 - 09:00
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Texto José d'Encarnação, arqueólogo

 

Pax Iulia (Beja) foi, na origem, uma colónia romana; ou seja, os seus primeiros habitantes vieram doutras paragens. Não sabemos que critério houve para a sua escolha, por parte do triúnviro César, o seu mui possível fundador. Provavelmente, para recompensar os partidários que o haviam apoiado na luta contra Pompeu. Gente de fora terá sido, portanto. Acontece, porém, que o lugar já fora reconhecido como bom pela população autóctone e houve, pois, que ‘negociar’, diríamos hoje: onde é que ficam uns, onde é que ficam outros.

 

Não há, nas crónicas da época, indício de querelas e, por outro lado, dá mesmo a impressão, pelas deduções plausíveis tiradas a partir dos documentos epigráficos, que tudo se passou com alguma cordialidade e mútua aceitação. Há mesmo uma inscrição que sugere ter havido, pelo menos durante certo tempo, dois senados, dois órgãos de governo: um para autóctones, outro para os cidadãos romanos recém-instalados.

 

A provar essa «arte de bem receber» poder-se-á apontar o epitáfio de uma jovem de 33 anos, mandado lavrar pelo pai «à filha, modelo de piedade», que nos chegou graças ao cuidado de Frei Manuel do Cenáculo.

 

FREI MANUEL DO CENÁCULO

Sim, importa referir, antes, que Frei Manuel do Cenáculo, desde 1777 bispo de Beja, além do seu múnus pastoral, muito se interessou pelas antiguidades. Chegou a reunir uma colecção de velharias arqueológicas a que se deu o nome de «Museu Sisenando Cenáculo». Tendo sido, em 1802, nomeado arcebispo de Évora, para essa cidade levou parte significativa desse espólio, incorporado no agora denominado, por força do decreto-lei nº 78, de 5 de Junho de 2019, Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo.

 

Na Biblioteca Pública eborense, que criou, guarda-se, entre outras preciosidades, o Códice CXXIX/1-14, «Álbum de Antiguidades Lusitanas e Lusoromanas e Lapides do Museu Sesinando Cenáculo Pacense», colecção de desenhos elaborados por ele próprio, arcebispo, ou por colaboradores seus de confiança nesse álbum que, com o nº 10, se mostra essa pedra «com três palmos de comprimento e dois e meio de largo», como rezam as fontes mais antigas, que acrescentam ter sido encontrada em 1742, «na vinha de Pantaleão, no sítio de Torrejão, junto da horta de Bacelo», freguesia de Baleizão.

 

Temos a possibilidade de comparar monumentos hoje ainda existentes com os respectivos desenhos desse álbum e daí concluir que o rigor era deles apanágio. Assim, quando alguns escrevem, por terem visto, «acha-se esculpido em um canto desta pedra um globo e no outro um jarro», a verdade é que esse ‘globo’, que é uma pátera (espécie de prato com pega), e o jarro estão habilmente desenhados no álbum, para que se saiba. Constituem elementos decorativos dos altares funerários romanos, simbolizando, em baixo-relevo, os dois principais objectos usados para purificar o cadáver antes de ser sepultado ou cremado.

 

Multimédia0Foto | José Luís Madeira

 

 O PAI DA JOVEM

¿Que diz, então, essa notável epígrafe, redigida em latim, como é de uso? «Aqui jaz F… de 33 anos. Gaio Blóssio Saturnino, da tribo Galéria, Neapolitano de África, Areniense, habitante de Balsa, à filha, modelo de piedade. Que a terra te seja leve». Desconhecemos o nome da defunta, porque o monumento já foi achado partido, decerto para ser reutilizado.

 

Temos, todavia, o nome do pai e é esse que ora particularmente nos interessa, não tanto por ele se ter chamado Gaio Blóssio Saturnino, mas pelas informações que fez questão em juntar à sua identificação. Diz ele que era natural de uma cidade romana do Norte de África, chamada Neapolis (a «nova cidade»).

 

Situava-se Neapolis onde é hoje a cidade de Nabeul, no nordeste da Tunísia, costa sul da península do Cabo Bom; foi, na Antiguidade, mui importante centro de exportação de trigo de e de garum para Roma. Recebera, por isso, a tribo Arnense, que era a da sua cidade. Daí partiu para Balsa, localidade romana localizada nas imediações da cidade algarvia de Tavira, porto de mar também.

 

Os seus préstimos terão sido aí deveras apreciados – quiçá tenha servido de eficiente intermediário nos negócios entre as gentes de Balsa e as da sua Neapolis – de tal sorte que os balsenses lhe deram atestado de residência, com todos os direitos a tal inerentes. Por isso, tal categoria vem consignada no epitáfio de sua filha: incola Balsensis.

 

Sua fama terá chegado a Pax Iulia, capital da circunscrição administrativa dessa zona de Lusitânia, o chamado «conventus Pacensis»; não admira, por isso, que os responsáveis pela cidade, desejosos também eles de promoverem os seus intercâmbios com o Norte de África romano, o tenham aliciado; e foi já em Beja que ele teve o desgosto de ver falecer sua filha. Daí que o conselho municipal, a ordem dos decuriões, o tenha incluído na tribo da cidade, a Galéria, outorgando-lhe todos os direitos de cidadania. Gaio Blóssio Saturnino constitui, pois, um dos raros romanos de que temos conhecimento através dos monumentos epigráficos que usufruiu de dupla tribo.

 

Neste caso, a da sua cidade natal, a Arnense, e a Galéria, da cidade de Pax Iulia (Beja), que, de braços abertos, o acolheu a ele e à sua família. Outros documentos há, da época romana, a mostrar a arte de bem receber dos habitantes de Pax Iulia. Este será, porventura, um dos mais eloquentes. Acrescente-se que esta inscrição é tão singular que os investigadores que não tiveram acesso ao desenho de Frei Manuel do Cenáculo tiveram dúvidas acerca da sua autenticidade.

 

Assim, António Beltrán, por exemplo, escreveu: «Esta inscrição parecenos espúria ou, pelo menos, mescla de várias inscrições»; opinião que levou o especialista italiano Giovanni Forni a não a incluir no seu notável artigo de 1966, em que explicita estarem os casos de “dupla tribo” relacionados com o exercício dos direitos políticos em municípios e colónias – como foi, seguramente, o caso de Blóssio Saturnino.

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