Diário do Alentejo

Onde os barris são sepulcros romanos!

14 de novembro 2022 - 12:00
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Texto José d’Encarnação, Arqueólogo

 

Noticiou “O Bejense”, na sua edição de 14 de Outubro de 1893 (nº 1710), que a Câmara fizera «recolher no seu museu uma memória sepulcral em forma de pipa» com uma inscrição, que transcreve. Dois anos depois, nas páginas 265-226 do volume I, datado de 1895, da revista “O Archeologo Portuguez”, a revista que ele criara como órgão do museu que é hoje o Museu Nacional de Arqueologia, José Leite de Vasconcelos dava miúda conta desse achamento no Campo d’Oliva, «hoje jardim público, em Beja».

 

Tratava-se de «uma sepultura rectangular, de paredes de tijolo», na espessura das quais «havia pequenas cavidades em que se encontraram vários objectos»: «uma bonita lucerna de barro, com a figura de um quadrúpede no disco», «a valva de um pécten», «fragmentos de vaso, ou vasos, de vidro decomposto, restando ainda parte de um gargalo, com 0,045 m de diâmetro». Ainda na parede, carvão; «no centro da sepultura, estavam ossos queimados».

 

Adianta: «Sobre a sepultura havia uma pedra de calcário cristalino, com uma inscrição funerária (hoje no Museu de Beja». E que «a pedra, como é frequente no Sul, tem a forma de pipa». A terminar, Leite de Vasconcelos explica como se processara a cerimónia:

«O cadáver de Clarilla tinha sido queimado na fogueira fúnebre, depois do que se recolheram religiosamente no sepulcro os restos incinerados. À fogueira chamavam os Romanos rogus; a pilha de lenha, antes de arder, tinha o nome de pyra. A acção de recolher as cinzas e ossos queimados denominava-se ossilegium».

 

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A INSCRIÇÃO

Vejamos, então, em primeiro lugar, o que diz a inscrição. O estudo de Leite de Vasconcelos fez com que o monumento entrasse de imediato no circuito científico internacional. A sua inscrição, que foi o que mais despertou a atenção, vem transcrita, por exemplo, no nº VIII, da revista “Ephemeris Epigraphica”, publicada em Berlim no ano de 1899 e consta, hoje, das bases de dados epigráficos romanos. Escrita em latim, como é hábito, poderá traduzir-se desta forma:

Consagrado aos deuses Manes. Aqui jaz Coceia Clarila. Viveu 80 anos. Pompeu (?) [ou Pompeia?] Comum pôs o monumento à digna de todo o merecimento.

A fórmula inicial acentua o carácter sagrado, inviolável, do sepulcro: está consagrado às divindades que acompanham ao Além o espírito do defunto e, por isso, quem o violar incorrerá no castigo divino. A princípio, como sempre acontece, havia respeito pelos mortos e não era preciso acenar com penas, mesmo que divina fossem. A partir de meados do século I da nossa era – no caso da Lusitânia romana – tornou-se necessário indicar, em siglas, essa consagração, porque os furtos começaram.

 

Recorde-se que, de facto, o sepulcro detém em si toda uma carga simbólica. O jornal “Expresso” mostrou, na edição de 22.12.1990 (p. 10 da revista), a destruição de sepulturas no cemitério judeu de Carpentras, localidade onde existe a mais antiga sinagoga francesa, acto significativo de ódio antissemita.

 

Vem depois a identificação da defunta: pertence à família dos Coceios e tem um nome, Clarila, nada frequente na epigrafia do mundo romano, pois, até ao momento, só se encontraram mais 5 testemunhos do seu uso. Também o nome da família, que foi o do imperador romano Nerva, não é corrente: cerca de uma dezena de exemplos na Lusitânia; encontrou-se o sepulcro de uma outra Coceia, Victoria de seu nome, no castelo de Beja e um dos devotos da divindade Endovélico, no seu santuário de Terena, é um cavaleiro romano, Sexto Coceio Cratero Honorino. Tudo isto para dizer que, mui provavelmente, Clarila tem ascendência itálica; a família poderá ter integrado os primeiros colonos da cidade.

 

Assinale-se a provecta idade com que Clarila morreu. É isso: provecta! Não significa que tenham sido mesmo 80 anos. Foram muitos! 2 x 40, dado que 40 era como que um número simbólico também, a indicar a idade perfeita. Era costume romano arredondar a idade em lustros.

 

O dedicante (ou a dedicante) do monumento identifica-se mediante a sigla do nome de família e com o nome Communis, que também é latino e… nada comum! Com efeito, trata-se do único testemunho encontrado na Lusitânia. E a que família terá pertencido? Preferiu não a explicitar, para o que podem encontrar-se duas razões: havia pouco espaço para a mencionar por extenso ou trata-se de família bem conhecida e que, por isso, facilmente seria identificada. Em todo o caso, realce-se não ter havido da sua parte a pretensão de se evidenciar; a importante era… Clarila!

 

E que relação terá havido entre Communis e Clarila? Temos sido tentados a ver na sigla M a palavra Matri, «à mãe», até porque vem de seguida o adjectivo ‘benemerente’ e afigura-se normal que haja também o substantivo correspondente. Preferimos, porém, desdobrar em ‘monumentum’ e, assim, eventual relacionamento de Communis com Clarila fica ainda mais no segredo…

 

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UM BARRIL?

Em História da Arte, reconhecemos que um estilo acabou por incorporar pormenores típicos de cada região. Diz-se, por exemplo, que o manuelino é uma modalidade do gótico, assim como o plateresco de Espanha; concorda-se que o românico do Norte de Portugal difere do românico asturiano. E esta alusão aos estilos vem a propósito de esta forma de sepulcro se encontrar em diversas regiões do mundo romano. Chama-se-lhe cupa, vocábulo eruditamente trasladado do latim «cupa», que significa «barril, tonel».

 

É na zona de Pax Iulia que o monumento assume claramente a forma de barril, estando representados os aros que apertavam as aduelas. Na região de Lisboa, optou-se pela estilização, sem qualquer representação de aros; na cidade de Coimbra (a romana Aeminium) mais parecem arcas dos tesouros de piratas. Formas diferentes, concorda-se, de apresentar a mesma ideia. A pergunta surge, por conseguinte, natural e intrigada: «Um barril, porquê?».

 

Muitas explicações se têm dado; houve reuniões científicas expressamente dedicadas ao tema; monografias a expor detidamente propostas e contrapostas. Este falou que se aludia à bebida (ambrósia, o néctar dos deuses) com que o defunto se iria deliciar; aquele viu aqui um hino à riqueza vinícola do Alentejo, já em tempo de Romanos (não se encontraram grainhas de uva no lagar da villa de S. Cucufate, em Vila de Frades?...).

 

A explicação mais curiosa foi sugerida pelo arqueólogo suíço Waldemar Deonna (1880-1959) num texto publicado em 1946, com o título «Quando Deus rola os seus barris». Para ele, trata-se de uma homenagem à divindade do panteão gaulês Sucellus, «um deus tanoeiro, do vinho ou da cerveja, um deus da fertilidade e dos campos», que desempenhará, igualmente, funções celestes, na medida em que «o barril pode lembrar o trovão, cujo ribombar evoca o barulho provocado pelo tanoeiro, ao dar volta aos seus barris».

 

E conta Deonna, a este propósito, que, em 1556, quando um raio atingiu a catedral de São Pedro, em Genebra, o povo combateu o incêndio misturando na água uma grande quantidade de vinho, pelo que, conclui, se fica com a ideia de que «a água, de per si, não consegue apagar um incêndio ateado pelo céu!».

 

Por isso, Sucellus – assim representado pelo barril – é «o dono do fogo celeste e também um deus vinhateiro, cuja cólera, manifestada pelo ribombar do trovão, deve ser apaziguada pelo rolar dos barris». Em 1951, um dos maiores epigrafistas que trabalhou em Portugal, o romeno Scarlat Lambrino (1891-1965) manifestou-se conforme a essa interpretação, inclusive identificando Sucellus com a divindade Endovélico, venerada em Terena. E explica assim a cupa de Clarila:

 

«O túmulo estava, portanto, abaixo do nível do chão, enquanto que o barril, longe de conter os restos mortais da defunta, mais não era do que o signo simbólico do túmulo».

 

Confirma, desta sorte, a hipótese aventada por Deonna: a cupa, símbolo da felicidade eterna, a bebida sagrada que inebriaria o defunto no Além. Quem visita a aldeia de Matmata, na Tunísia, não deixa de ficar surpreendido não apenas por os seus habitantes viverem abaixo do nível do solo mas também por ser abobadada a parte superior (o tecto, dir-se-ia) das suas grutas. Inclusive, o «hotel» segue esse paradigma de tecto em abóbada.

 

Quem visita o Alentejo profundo e entra na frescura duma das suas casas antigas, não deixa de admirar a lindeza que é o tecto em abobadilha, uma técnica que já poucos sabem arquitectar mas que importa não perder, pelo conforto que empresta à habitação e por se tratar de uma prístina tradição radicada nas condições climatéricas próprias da região.

 

Por consequência, a cupa romana pode não ser mais do que a representação singela da mansão eterna, simbolizando a cobertura em abóbada das casas e deixando o defunto a olhar para a abóbada celeste. Tal como se começou por dizer em relação aos estilos artísticos, também os artífices assumiram as tendências de cada uma das regiões: aqui, a representação realista dum barril; acolá, o baú do tesouro dos piratas; mais além, a estética doçura das linhas suaves que o mármore brando melhor permitia esculpir.

 

Donde veio este modelo? Das costas mediterrânicas, tanto da africana como do Médio Oriente. Prosperou, por exemplo, em Barcelona. Chegou, pelo Atlântico, à região de Lisboa; chegou a Pax Iulia, vindo de Mértola.

 

Lavrada no mármore de Trigaches, a tampa do túmulo de Coceia Clarila é, seguramente, a mais elegante dentre o significativo conjunto das cupas alentejanas. E bendizemos o facto, lamentavelmente fora do comum, de nos haver sido pormenorizadamente transmitido o significativo espólio que na sua sepultura foi encontrado.

 

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