Diário do Alentejo

Ressaca de uma manifestação atrás do cimento
Opinião

Ressaca de uma manifestação atrás do cimento

Manuel Barroso, quadro superior da Administração Pública

08 de dezembro 2019 - 12:00

Mesmo rebuscadamente será muito complicado compreender a colocação de barreiras de betão armado na frente da recente manifestação de agentes da PSD e dos militares da GNR, junto à base da escadaria frente à entrada principal da Assembleia da

República. Independentemente da opção de quem decidiu tal estratégia (que senti como inadequada para tal contexto), este acontecimento pode passar a constituir um precedente complexo, cujas consequências são, por isso mesmo, imprevisíveis.

 

No contexto em apreço, a colocação de blocos de cimento, semelhantes aos que ocasionalmente são utilizados em especiais situações de constrangimento rodoviário, em rigor, suscita preocupações várias… e de diferentes tipos. Esta forma de controlar a segurança afim a uma manifestação (autorizada e legítima), colocando aquele pesado conjunto de módulos de betão armado entre a linha-da-frente da manifestação e o edifício da Assembleia da República, foi completamente inadequada, sob o meu ponto de vista, tanto mais que naquele contexto havia uma muito significativa presença de polícias fortemente protegidos/armados e estrategicamente dispostos (presumo!).

 

A mais simples e primária observação daquele contexto sugere algumas questões e/ou uma breve reflexão (sem prejuízo de outras leituras que daí derivem):

 

1.ª Será que o “poder” passou um atestado de incompetência às forças de segurança que ali estavam, deixando a ideia de que não teriam capacidade operacional de enfrentar alguma deriva menos própria por parte dos manifestantes? Creio que, em condições normais, essa força não precisaria de nada parecido, pois sabe-se que estão treinados para enfrentar todo o tipo de situações. Aliás, em anterior homóloga situação de há uns anos, chegou-se mesmo a configurar um triste e impensável episódio conhecido por “secos e molhados”, tal foi o “esmero” e exagerado uso de força e outros meios com que agentes de polícia enveredaram pela violência contra colegas manifestantes à civil.

 

2.ª De igual forma, sabendo-se que os manifestantes também eram polícias ou militares da GNR, será que o “poder” pretendeu passar um atestado de incapacidade cívica a todos os que ali se manifestavam, explicitando, assim, um pré-juízo público sobre os seus possíveis comportamentos em situações-limite, isto é, aquando de possíveis situações problemáticas em que estas pessoas estivessem não em condição de manifestantes mas como agentes de segurança?

 

3.ª A dúvida, caso não seja inequivocamente esclarecida, poderá persistir – e a ninguém será interessante, ou seja, será que o “poder” pretendeu tomar os agentes da defesa e segurança pública ali presentes como um grupo de delinquentes ou insubordinados? Ora, para qualquer cidadão que não seja agente da PSP ou militar da GNR (refiro estes dois grupos profissionais, apenas para restringir o “universo” afim àquela manifestação), como é o meu caso, se as duas anteriores questões não forem devidamente esclarecidas, parece ser legítimo perguntar ao “poder” se (face ao teor de tais questões) qualquer cidadão estará seguro com a ação destes corpos de segurança? À laia de declaração de interesses, quero referir que tenho toda a confiança nestes profissionais, aliás, estando no mesmo lado destas suas barricadas! Para que a democracia e a liberdade sobrevivam exige-se que os procedimentos sejam adequados. Porém, continuo a questionar…

 

4.ª Será que o “poder” respeita e/ou aplica adequadamente as normas e os procedimentos afins ao direito constitucional da manifestação, na suas formas gerais e/ou específicas, como é o caso, ou reconhece e/ou pretende solucionar a muito difícil situação daqueles que ali se manifestavam? Como dúvida final: Será que o “poder”, em futuras manifestações, vai recorrer a blocos de cimento armado para “assegurar” ou “facilitar” a segurança? Enfim, para que a democracia e a liberdade sobrevivam exige-se que os procedimentos sejam adequados… os cidadãos merecem ser tratados condignamente.

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