Na semana passada, regressando de uma viagem, uma das últimas etapas consistiu em atravessar Espanha por estrada. Esta referência geográfica, carregada de simbolismo e afetos por ali ter vivido alguns dos melhores anos da minha vida e ali ter construído amizades que perduram, tem igualmente o mérito de me “transportar” ao simples exercício de elaborar um breve e inevitável paralelismo entre os dois países ibéricos e respetivas circunstâncias, tendo “paragem” não nos Açores da Jangada de Pedra de Saramago, mas no meu/nosso Baixo Alentejo.
Com efeito, ao cruzar os Pirinéus, naquele cume de Roncesvalles, ponto de partida de um dos vários “Caminos de Santiago” em território ibérico, fui “transportado” mentalmente para aquela ideia de José Saramago que, a partir de uma série de acontecimentos sobrenaturais, se referia à separação da Península Ibérica e à respetiva evolução por esse Atlântico fora, inicialmente em direção aos Açores. Com a devida homenagem ao nosso ilustre Nobel, permito-me propor que a “viagem agora de carro” não se situe no “mundo ibero”, mas, tão só, numa trajetória com passagem pelo Baixo Alentejo… nem que seja pela justa homenagem ao nosso Vasco da Gama ou a algum desses nossos coletivos “navegadores do cante”.
À partida, parece tratar-se de um esforço intelectual muito ousado. Todavia, recorrendo à organização das imagens que fui memorizando ao longo dos muitos quilómetros e pensamentos que me acompanhavam, proponho-me, agora, partilhar esse meu “atrevimento”, decalcado da ideia de uma magnífica e metafórica “jangada”, neste caso, numa configuração onde cada um de nós possa ser um timoneiro de pensamento livre.
Como gosto especialmente dos números primos, apenas me irei referir simbolicamente a três aspetos: os trigais, os olivais e… as condições gerais de vida das pessoas. Depois de um longo, sinuoso e verde caminho, eis que surge um dos primeiros aspetos que marcou a minha atenção: trigais compactos de espigas robustas, uniformes, ondulando em planálticos hectares de perder vista.
Parecia que a ideia de “celeiro” também por ali se tinha instalado… ou melhor, o cenário fazia crer que ainda estava a acontecer. Lembrei-me de um velho estereótipo associado à “tradicional” condição cerealífera do Baixo Alentejo... já “fora de tempo”. Por analogia, fui levado a refletir sobre o anacronismo entre a realidade da nossa região e a temática dos textos do nosso cancioneiro, em especial nos tempos verbais. O Baixo Alentejo há muito que deixou de ser a “terra do pão” (pelo menos, como consequência daquela tradicional ideia de ser o “celeiro de Portugal”).
Fiquei um pouco mais tranquilo quando um amigo me comentou que as taxas de produtividade dos trigais naquela região são muito altas e que tal cultivo continua a ser significativamente rentável. Não sendo especialista em tais matérias, não deixei de inferir que a quebra de cultivo de cereais no Baixo Alentejo se poderia atribuir, quiçá, à sua não viabilidade económica. Será mesmo? Confesso que não consigo ter uma ideia definitiva sobre isto. Fica o desafio para quem tem tais conhecimentos!
Mais uns quilómetros… e o meu orgulho ficara agora mais satisfeito: as vinhas não pareciam ter a mesma “densidade” que as vinhas do Baixo Alentejo. Embora soubesse que os olivais espanhóis se encontram numa região bem mais a sul do caminho em que eu circulava, na verdade, não vi nada comparável aos olivais alentejanos dos nossos dias.
Ora, eis um assunto que está na ordem do dia da nossa região. Quão bom seria que houvesse consenso sobre esta matéria… quer pela economia e emprego, quer pelas suas diferentes formas de sustentabilidade. Esta continua a ser outra das matérias em que não consigo ter uma ideia formada. Em todo o caso, acredito que tudo se pode fazer de forma adequada, pois o nosso distrito/região precisa de progredir, proporcionar empregabilidade e criar condições de vida para quem aqui vive. Finalmente, o terceiro e último indicador desta “viagem” acoplado à Jangada de Pedra: as condições de vida – todas as que se podem inferir ou constatar.
A título de exemplo, e sem querer cair em generalizações, não posso deixar de sublinhar a diferença observada na densidade de estradas e “autovias” que cruzam Espanha, sem cobrança de portagens, face à densa e onerosa cobrança nas homólogas vias portuguesas. De igual forma, percebi as enormes diferenças em diversos tipos de infraestruturas de “lá” e de “cá”, onde do lado português, e no caso específico do Baixo Alentejo, se evidencia o desleixo, a negligência e a falta de respeito generalizada pelas condições da nossa região (autoestradas por concluir, caminhos de ferro obsoletos com comboios a avariar a meio dos trajetos, um ‘aeródromo’ que não consegue ser ‘aeroporto’, acessibilidades gerais, infraestruturas de saúde e recursos afins, meios de promoção de cultura e de educação… promessas político-administrativas por cumprir por parte das diferentes administrações).
Contudo, com a responsabilidade pessoal que me é devida, e porque nada destes constatáveis indicadores de pendor negativo dilui, eclipsa ou faz abdicar a vontade que me move para a mudança, não me calarei nem me equivocarei de “alvo” sobre o que entendo ser o “azimute” do progresso e das condições de vida das nossas gentes.Não abdicarei de lutar pela liberdade e pela democracia, pela paz, pelo personalismo, pelo humanismo e pelo universalismo num Baixo Alentejo onde todas – todas mesmo! –as pessoas são úteis, desejadas e merecedoras do respeito e dignidade.
Referia-me antes a uma configuração onde cada um/a de nós pode e deve ser um/a livre timoneiro/a. Pois bem, a partilha destes “indicadores” não é – de todo! – uma “carta de orientação” ou de “navegação”. Pelo contrário, é apenas uma simples proposta (entre as muitíssimas possíveis) de convite à reflexão sobre os muitos e variados domínios que afetam e/ou condicionam a vida no meu/nosso Baixo Alentejo.