Diário do Alentejo

Fogo
Opinião

Fogo

Vítor Encarnação, professor

24 de dezembro 2022 - 14:00

Se eu tiver pensado em ir a algum lado, se me tiver comprometido com alguma coisa, o melhor é não fazer fogo. Se eu fizer fogo, se a lenha começar a arder, se a chama acender o conforto da tarde que se apaga, se a labareda alumiar os meus olhos, se o calor me invadir os ossos e a alma, se o estalar da lenha beijar o sossego, se o fogo me fizer companhia, se as brasas me começarem a fechar os olhos, eu já não saio de casa.

Podem telefonar, mandar recados, vir buscar-me, fazer juízos de valor sobre a minha teimosia - que não conviver faz mal, que quanto mais pensamos pior é, que a solidão transforma-nos em cinza, que temos de espairecer - mas eu não vou, nada me demove deste afincamento de ser feliz e me sentir completo em frente ao chupão. Para conseguir respeitar os compromissos, para não mudar de ideias de repente, não posso sequer aproximar-me da lenha, tenho de fechar os olhos, fazer que não a vejo, que não lhe ligo, que tenho coisas mais importantes, que há gente à minha espera, pessoas que contam comigo, amigos que me guardaram lugar à mesa.

Mas a lenha é uma amante fatal, a lenha tem fogo dentro dela, a lenha seduz-me e eu esqueço tudo, largo tudo e vou ter com ela. Invento mentiras, digo que tenho assuntos para resolver, digo que me dói a cabeça. Agarro-lhe na mão de azinho, puxo-a para mim, encosto-a ao peito, pego-lhe ao colo, deito-a no chão e depois ardemos os dois devagarinho no silêncio da noite. Batem à porta, mas eu não vou abrir.

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