Diário do Alentejo

Otelo
Opinião

Otelo

Luís Godinho, jornalista

06 de agosto 2021 - 11:55

Só esta semana – são assim os caminhos do acaso – li uma obra de João Tordo. O Luís Miguel Ricardo, presidente da Associação de Escritores do Alentejo (Assesta), e colaborador do “DA”, onde tem vindo assinar diversos textos sobre criadores artísticos da região, já me tinha advertido sobre esta imperdoável falha; ele que sempre prefere o vórtice da descoberta aos “mares tranquilos” dos clássicos. Eis-me pois com “Anatomia dos Mártires”, recentemente reeditado pela Companhia das Letras. No epicentro de crise financeira que atingiu o País em 2009, e que haveria de levar o Governo de Pedro Passos Coelho, uns dois anos depois, a aconselhar a rapaziada, em particular os professores, a emigrar, um jovem jornalista decide provar ao seu editor que é capaz de fazer muito mais do que o papel de simples “pé de microfone”. Poucos dias antes de lhe ser encomendada uma reportagem sobre o biógrafo de um (digamos assim) “mártir religioso”, o tal jornalista acompanha um velho camarada de redação numa viagem de Lisboa a Serpa, no regresso da qual fazem um desvio até Baleizão e ao memorial de Catarina Eufémia. Decide então investigar a vida e a morte de Catarina, “procurando decifrar o nevoeiro que envolve os mitos e os mártires”, sempre presentes na história dos povos. “Inculto da dimensão da ditadura que sufocou o País antes do 25 de Abril, o que descobre no caminho é bem diferente do que esperava”. Trata-se, é certo, de uma obra de ficção. Mas marcada, logo nas primeiras páginas, por um relato que traduz a opressão vivida pela esmagadora maioria do povo alentejano [aqueles a quem António Gervásio se referia como o operariado agrícola do sul, “gente que nada tinha de seu, a não ser as mãos para trabalhar”] durante a ditadura fascista de Oliveira Salazar. “Gente que deu a vida pela terra e que o único troco que recebeu foi porrada. Jornas miseráveis e porrada (…) o meu pai foi um deles. O meu pai nasceu e morreu aqui sem nunca ter visto outra coisa senão miséria. Andou na apanha da azeitona a vida toda e, quando chegava o inverno e não havia trabalho, roubava perdizes e o mais que conseguisse arranjar para nos pôr comida na mesa. Andava pelos campos à noite como um louco, com olhos de louco, com cara de louco, as mãos encrespadas de um louco, a uivar de fome e desespero” – conta esse velho camarada de redação ao jovem jornalista. Pois bem, foi este País profundamente marcado pela repressão, pela opressão e pelas desigualdades sociais, pela perseguição e pelas prisões política, pela ignomínia da PIDE e da Guerra Colonial, que acabou no dia 25 de abril de 1974 por ação de um grupo de militares comandado por Otelo Saraiva de Carvalho, falecido esta semana. Não, Otelo não tem apenas um lugar na história contemporânea de Portugal. Otelo tem um lugar cimeiro, e determinante, na construção do País que hoje somos, um País livre e democrático. Na construção de um País onde não se anda “a uivar de fome e desespero”.

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