Diário do Alentejo

Territórios digitais e inteligência coletiva
Opinião

Territórios digitais e inteligência coletiva

António Covas, professor universitário

07 de julho 2021 - 11:05

O modo de olhar para um problema é uma parte importante do problema. Assim, digitalizar o território é uma perspetiva, territorializar o digital é outra perspetiva. Este artigo é sobre o ponto de encontro destas duas perspetivas complementares.

 

Os territórios digitais são uma espécie de novo emblema das políticas do território. Vale a pena, por isso, fazer um esforço analítico no sentido de perceber melhor em que consiste e o que está em jogo quando se fala de territórios digitais e digitalização territorial. Em referência ao negócio digital que irá inundar a sociedade portuguesa em todas as áreas de atividade, a digitalização de um território precisa de um contraponto, de um centro dotado de um mínimo de racionalidade territorial que evite a cacofonia e o ruído de fundo e seja capaz de estabelecer o ponto de equilíbrio entre uma perspetiva estritamente empresarial do negócio digital e a perspetiva da inteligência institucional e coletiva das comunidades territoriais. Vejamos alguns aspetos deste difícil e precário equilíbrio. (…)

 

OS MODOS CONVENCIONAL E DIGITAL DA CARTOGRAFIA TERRITORIAL

 

Os territórios digitais abrem o caminho para uma outra perspetiva de olhar para os problemas de desenvolvimento territorial. Estou, desta forma, a sugerir que a cartografia convencional de fazer território dá lugar a uma outra cartografia menos convencional e mais virtual de desenhar a cartografia territorial, ou seja, estou a somar realidade à realidade já existente e, assim, a criar uma nova oportunidade para o desenvolvimento dos territórios (ver tabela).

 

O modo convencional tem uma determinada georreferenciação ou cartografia territorial, se quisermos, um padrão de mobilidade mais fixo, mas, também, um modo de sociabilidade e comunicação mais físico e presencial, se quisermos, mais emocional. O modo algorítmico ou digital tem uma georreferenciação diferente, um padrão-fluxo e uma cartografia mais móvel, bem como uma sociabilidade e comunicação mais intangíveis e virtuais.

 

Se observarmos os dois modos de ocupação do território pelo prisma das três inteligências (racional, emocional e artificial) verificaremos que a inteligência emocional sai claramente perdedora quando passamos do modo convencional para o modo digital. Ora, é a inteligência emocional que melhor consubstancia quer a ocupação do território e a nossa relação com a natureza, quer a provisão sentimental para a comunicação e a sociabilidade humanas. Esta constatação é plena de consequências quando olhamos a política de ordenamento e o planeamento urbanístico das grandes cidades, pois na mesma cidade temos dois universos significantes em profunda interação. Como se fossem duas cidades na mesma cidade: o universo dos problemas materiais e tangíveis que precisam de ser digitalizados e virtualizados (a virtualização da realidade) e o universo dos imaginários virtuais (o realismo virtual) que aguarda para ser convertido em realidade tangível e material e outras tantas comunidades reais.

 

Nesta cidade a duas velocidades fica por saber como evoluem as respetivas cartografias territoriais e as representações do espaço público, como se acomodam os espaços ditos verdes, qual é a adequação da arquitetura urbana a esta dupla velocidade e como se distribui o nosso padrão de mobilidade nesse contexto.

 

OS MODOS E AS PLATAFORMAS, ENTRE O ‘IN SITU’ E O ‘EX SITU’

 

No modo convencional os cidadãos vão ter com os serviços que estão fisicamente estabelecidos nos locais de residência de acordo com uma certa geografia urbana. Os percursos são familiares: o quiosque, a casa das apostas, o café, a loja, o serviço público, a agência bancária, o posto dos CTT, a farmácia, a livraria, a biblioteca, o consultório, o restaurante, a galeria, a sala de conferência, entre muitos outros locais. No modo digital, e em muitos casos, são os serviços que vêm ter connosco, em linha e no terminal do nosso ‘smartphone’: o jornal ‘online’, o jogo ‘online’, as compras ‘online’, as encomendas ‘online’, o ‘e-government’ e ‘e-banking’, a refeição ‘takeaway’ uberizada, o teletrabalho e a telemedicina, as visitas digitais aos museus e galerias, o ‘e-book’, os eventos nas redes sociais, os’ webinares’, entre outros. Parece, assim, que o fixo virou fluxo.

 

Além disso, a covid-19 obrigou a reconsiderar as deslocações, concentrações, serviços, espaços de lazer e de recreio, o universo desportivo, a arquitetura urbana do espaço público, ou seja, tudo o que diz respeito à ocupação e distribuição pelo território. Ainda é cedo para perceber o impacto nos modos de organizar a cidade, mas nada ficará como dantes.

 

No modo convencional a cidade está verticalizada, o poder está centralizado e domina a cidade. O universo que prevalece é o universo dos equipamentos, infraestruturas e serviços públicos, ou seja, o universo das autoridades públicas. No modo digital e algorítmico o código domina a cidade, a cidade está mais horizontalizada, as plataformas colaborativas partilham o poder, um poder mais lateral que dispensa, em certas condições, a intermediação das autoridades públicas. Não falamos de cidade dual, mas de plataformas públicas, privadas e cooperativas que procuram ainda uma base colaborativa de entendimento. Quando alcançarem esse objetivo teremos, seguramente, uma outra cartografia, um outro padrão de mobilidade, um outro território espaço-público.

 

No plano técnico, as plataformas, os algoritmos e os aplicativos criarão duas realidades distintas, mas complementares: as atividades ‘in situ’ de presença física direta e as atividades ‘ex situ’ de controlo e monitorização à distância. Como é óbvio, os planos de ação compreenderão sempre as duas atividades em dosagem variada de acordo com o respetivo planeamento.

 

Num plano mais substantivo, porém, a realidade ‘in situ’ é um espaço cognitivo onde a comunidade local ainda tem alguma capacidade de observação-ação e, portanto, de diálogo e comunicação. Essa capacidade pode perder-se a partir do momento em que os novos dispositivos digitais tomam conta da ocorrência e começa a monitorização ‘ex situ’. A partir desse momento a linguagem do alfabeto das comunidades humanas dará, progressivamente, lugar à linguagem codificada da inteligência artificial (Internet dos objetos). Doravante, os dados que registam a nossa passagem, a nossa rastreabilidade pessoal, serão a matéria-prima de base das plataformas e dos algoritmos. Deixamos de ser um cidadão freguês membro de uma comunidade local para ser um ficheiro, uma ‘password’, um número de conta ou uma notificação numerada.

 

No plano da mobilidade e ordenamento do território, é óbvio que tudo depende de uma complementaridade saudável entre as duas perspetivas ‘in situ’ e ‘ex situ’. A lógica das plataformas e dos algoritmos é uma lógica sem solo e com um ‘front office’ de intermediação muito mais reduzido, enquanto a lógica ‘in situ’ é uma lógica mais administrativa e com um ‘front office’ presencial mais numeroso. Por exemplo, a loja do cidadão já mudou a cartografia do espaço público que estava, antes, mais disperso, a extensão dos serviços ‘online’ irá modificar ainda mais essa cartografia territorial. Está verdadeiramente em causa o conceito de “administração pública do território” tal como o conhecemos até aqui.

 

ESTRATÉGIA DIGITAL E INTELIGÊNCIA TERRITORIAL

 

Aqui chegados, a reconfiguração do território dependerá da estratégia digital prosseguida. Existem, pelo menos, cinco tipos de inteligência territorial que enquadram e delimitam tudo o resto:

 

- Uma simples otimização de recursos na provisão de serviços públicos convencionais;

- Uma provisão de bens comuns intermunicipais em resultado de alguma forma de federalismo autárquico, as CIM, por exemplo;

- O lançamento de plataformas ‘made in’ para desenvolver a sociedade colaborativa local;

- A criação de um ambiente inteligente de educação/formação digital, virada para o utente/utilizador;

- A criação de um ecossistema digital integrado virado para uma estratégia de desenvolvimento territorial como instrumento de formação de novas economias de rede e aglomeração.

 

Neste alinhamento, é muito importante que a digitalização de um território não se reduza a um quisto tecnológico implantado em algum ponto do território; por isso, é fundamental que o território crie ambientes e ecossistemas inteligentes e que a digitalização seja um fator genuíno de democratização e qualidade de vida e não mais um fator de exclusão social.

 

TERRITÓRIO DIGITAIS E MUNICÍPIOS INTELIGENTES E CRIATIVOS

 

Não antevejo a criação de territórios digitais inteligentes sem um passo em frente dos municípios em direção a uma qualquer forma de federalismo autárquico que contemple, por um lado, a definição de um governo dos comuns e, por outro, a conceção e construção de um centro partilhado de recursos digitais. (…)

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