Tenho dois cães tal como tenho sentidos, boca, braços, coração, sonhos. Não concebo a minha vida sem cães, não se me afigura possível atravessar dias e noites sem os ter a meu lado, sem que eles façam parte da minha família, das minhas preocupações e dos meus planos, sinto que deles recebo sempre mais do que aquilo que lhes dou, o que eles me dão não tem preço. Para uns isto é um absurdo, mas outros concordarão incondicionalmente comigo, outros como eu sabem que um cão é de todos os seres vivos aquele que melhor conjuga o verbo amar. Tenho outros sete cães tal como tenho memórias, já morreram esses outros que vivem ainda dentro de mim, faço-lhes festas todos os dias, atiro-lhes bocadinhos de pão que eles apanham no ar, dentro de mim ladra uma matilha de saudades. Quem gosta de cães cria um alfabeto sem ordem nenhuma, inventa vocábulos estranhos que fazem dar ao rabo, cogita sons que fazem afitar as orelhas, junta consoantes e vogais esquisitas para falar com eles, diz-lhe palavras de amor ridículas, aliás, não seriam palavras de amor se não fossem ridículas. Os cães vivem pouco tempo para a importância que têm, a cada pessoa, quando nasce, devia ser dado um cão e essa pessoa devia tê-lo para a vida toda e as coisas deviam estar tão bem feitas que só quando morresse um é que morria o outro. É por isso que eu tenho nove cães e só quando eu morrer é que eles morrem.