Diário do Alentejo

Eduardo Olímpio: escreveu-se logo no verde que eu era
Opinião

Eduardo Olímpio: escreveu-se logo no verde que eu era

Texto Martinho Marques, escritor; Ilustração António Paizana

18 de janeiro 2021 - 09:40

1

 

Creio que em nenhum tempo as primaveras deixaram de me encontrar. Mas então era no tempo em que elas me sacudiam mais o corpo do que agora. Quase podia dizer que elas me atingiam tanto como atingiam as plantas. De uma forma que se via. Porque as faziam dar flor. Era no final da década de 60 ou no início da década seguinte do século em que nasci. Muitos dos que hoje cá andam ainda por cá não estavam. Mas o “Diário do Alentejo” estava há já bastante tempo e ia cumprindo o nome.

 

Por essa altura, apesar dos que iam dando, por profissão, existência a esse pequeno órgão da imprensa diária (que só ao fim de semana não saía), eram, sobretudo, as crónicas de um tal Eduardo Olímpio, que eu tinha por imperdíveis, que me faziam ansiar pela saída dos números desse jornal regional, que eu, com parcos recursos, penso que leria mais do que os jornais nacionais que então eram publicados.

 

A uma distância de 50 anos, não saberei precisar com rigor os motivos de tamanha atração por esses textos, mas o lirismo, a ironia, a elegância da escrita, deviam ser o que mais me levava a esperar com tanto empenho essas preciosas crónicas, pelas quais o seu autor (o próprio mo garantiu) não recebia um centavo.

 

2

 

Tendo a vida me levado a perder nalguns caminhos, fora de Beja e fora do Alentejo, procurei perder o mínimo da escrita de Eduardo Olímpio. Mas nem todos os livros me chegaram. Num, que terei alcançado talvez em 74 (“Às Cavalitas do Tempo”), julguei reencontrar alguns dos textos ou algum do estilo que eu já tinha encontrado no "DA". Neles, Eduardo Olímpio concede, curiosamente, exclusividade às minúsculas. Acredito que, antes dele, outros o tivessem feito, mas ele fê-lo antes de outros que agora nos surpreendem ao mostrarem prezar tanto a sua ousada atitude na opção de abolirem as maiúsculas e a têm por um dos traços da sua originalidade.

 

“António dos Olhos Tristes” talvez me tenha chegado uns quatro anos mais tarde. Foi aí que culminou a admiração que eu já tinha por ele. Folheio-o e releio-o, matutando no muito que já perdi por, ao longo dos meus dias, não o ter lido mais vezes. Sendo introduzido como “o único homem que eu conheci que sabia falar com os bichos todos que há na vida. Mas todos. Todos mesmo.”, António dos olhos tristes é o poeta, é o sensível, o simples que nos espanta com a maneira invulgar como se espanta e age perante os seres e as coisas mais vulgares, criando ele próprio beleza, em palavras e atitudes.

 

Não vou enunciar todos os títulos dos livros de Eduardo Olímpio (alguns com grandes tiragens e diversas edições), para não dilatar mais este texto, tornando-o ainda mais um obstáculo à sua inserção nas páginas em papel deste jornal, como elas eram no tempo que eu evoco. Mas não será difícil encontrá-los. Não os livros, mas os títulos, que são dezenas deles, atravessando a poesia, a ficção, a literatura para a infância e, mesmo sem ler as obras, os próprios nomes já dizem do artista da palavra que as assina. Permitam-me só que títulos mencione ainda mais três (os primeiros de poesia e o último de um romance) que, só eles, constituem já grandíssimas promessas: “Enlouqueço Amanhã”, “Como quem leva ao ombro a vida toda” e “Éramos oito na Pensão Celeste”. Além disso, evidenciam, como os outros que não cito, a importância que é atribuída ao ritmo, à forma como as palavras se dispõem nas expressões escolhidas, levando-me a concluir, sem exagero nenhum, que, pelo menos, alguns dos seus títulos são versos… que poderiam integrar poemas.

 

3

 

Um dia, de há cinco anos, a amiga Rosa Calado, da direção da Casa do Alentejo e minha colega do Liceu de Beja, de onde ambos saímos em 1967, veio-me fazer o convite para participar numa sessão de homenagem ao escritor Eduardo Olímpio, mas que não seria assim anunciada, porque homenagens não eram bem com ele. E o diálogo com ela deve ter sido semelhante a este:

 

─ Eh, Rosa, mas isso não é demasiado para mim?

 

─ Não é. Foi o próprio Eduardo que referiu o teu nome.

 

Nunca pensei que ele soubesse sequer que eu existia. Quanto mais conhecer alguma escrita de quem estava convencido que o que escrevia não se lia ao longe.

 

E a sessão foi marcada para a tarde de 19 de novembro de 2016 (um sábado) e anunciada como “O Alentejo na Poesia – pelo olhar de Eduardo Olímpio e amigos”. Foi lá que, pela vez primeira, contactei pessoalmente com ele. Foi lá que me autografou alguns livros que levei.

 

Desse dia para cá, carteamo-nos à antiga, sem regularidade, é certo, mas com frequência bastante  para sentir que nele jorram ainda carradas de entusiasmos. De poemas. De mais livros, com títulos e tudo. Com histórias que viveu ou que inventou nos variados contextos que o envolveram. Ele, que teve mil ofícios (“Fiz de quase tudo na vida”, reconhece) e conviveu com ilustres e com simples (que são, porventura, os mais ilustres de todos eles), dispõe de tantas memórias, que seria grande pena delas não nos deixar mais. Além daquelas que já nos foi deixando. E também soube, numa dessas cartas, que são 366 as suas letras-poesias que estão gravadas em disco. Eu, que sabia de algumas, não achava que eram tantas. E ainda não sei bem se o uso que faz da rima e o respeito pela métrica foram devidos à necessidade de criar textos para terem música ou se foi por assim serem que facilmente vieram a enriquecer centenas de canções.

 

Eduardo Olímpio nasceu em Alvalade do Sado num dia que foi 9 de janeiro e também segunda-feira. O ano não o digo, mas afirmo que este homem dá razão a quem diz que não se é velho, só se é jovem há mais tempo.

 

Estou falando de um escritor, sensível e empenhado, que não se limitou a escrever nem, sempre que escreveu, se limitou (recorro às suas palavras) “à beleza serena da escrita, poesia ou prosa”, porque “nunca quis escrever na linguagem dos deuses, nem na escrita do absoluto”. Estou falando de alguém que continua a cantar a grandeza do Alentejo, sem que nunca o abandone a sua inquietação com a solidariedade e a dignidade humana em todos os lugares.

 

4

 

Mas grande parte destas coisas todas já eu lhas escrevi ou já lhas disse. Perante alguns que as leram ou ouviram. Faltava-me só escrevê-las numa página do "Diário do Alentejo". No mesmíssimo lugar em que, pela primeira vez, eu esperei e encontrei a (já então) grande escrita do poeta Eduardo Olímpio. E muito perto do seu dia de anos.

 

Queria que os meus parabéns, que eu aqui hoje lhe deixo, fossem por ele entendidos como não se destinando só ao seu aniversário, mas a tudo o que nos deu ao longo da sua vida, sobretudo a sua obra, que comecei a seguir no tempo em que as primaveras se pareciam mais comigo e com o verde que eu era.

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