Diário do Alentejo

Labirinto
Opinião

Labirinto

Luís Godinho, jornalista

10 de dezembro 2020 - 11:55

Não por acaso, o filme biográfico de Miguel Gonçalves Mendes sobre Eduardo Lourenço intitulou-se "Labirinto da Saudade", o título do livro justamente classificado como o mais emblemático do professor, ensaísta e filósofo. Publicado em 1978, "O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português" é um "discurso profético" sobre o ser português, sendo que a categoria de "profético", cunhada por Fernando Ruivo, "tem aqui o seu sentido original de porta-voz desvendador de um destino coletivo a que uma vocação particular garante a validade e a autoridade" (in "Revista Crítica de Ciências Sociais"). Na semana em que morreu Eduardo Lourenço, e entre as inúmeras possibilidades de evocar a sua obra e o seu pensamento, talvez esta ideia de "labirinto", que simultaneamente nos encaminha e desorienta, seja uma boa forma de o fazer, sublinhando o seu trabalho na "busca de uma imagem coletiva nacional que aproxime os portugueses da sua própria realidade, imagem que seja produto e reflexo da existência coletiva nacional e do seu projeto histórico, contra-imagem de que os portugueses necessitam para se verem".

 

É como se nesse imenso labirinto por onde nos movemos fossemos sistematicamente confrontados com o "caráter e o sentido profundo" do nosso destino coletivo. "A imprevidência histórica de que várias vezes demos provas desde Alcácer Quibir à descolonização, a eterna surpresa que sublinha as catástrofes mais evitáveis, o nacional grito de pouca sorte com que comentamos os desastres que nós próprios elaborámos por inércia ou confiança infinita nas boas disposições da Providência, são só alguns dos aspetos com que mais brutalmente se manifesta a nossa riquíssima mentalidade de pobres milionários por direito divino", resume Eduardo Lourenço.

 

A "imprevidência" dessa batalha no norte de África, que conduziu à perda da independência, ou das decisões criminosas de Salazar e Marcelo que arrastaram milhares de jovens para uma guerra sem sentido em Angola, em Moçambique e na Guiné, pode também ser encontrada noutros momentos, igualmente trágicos, da nossa história mais recente. Veja-se o caso de Pedrógão. Ou o desmoronamento de grandes empresas como a PT e o BES. No seu labirinto, Eduardo Lourenço sublinha o caráter arcaico e estratificado da sociedade portuguesa, contrastante com uma "extraordinária mobilidade psíquica" que leva alguns indivíduos a ocuparem as mais "imprevistas" funções, tanto públicas como privadas. "No curioso 'far-west' em que nos convertemos - depois de séculos de clausura sociológica - a predisposição crónica do efeito de aparência eclipsa quase por completo a crítica e o contrapeso que a avaliação mais correta das exigências da realidade e das capacidades para a satisfazer importa".

 

E depois, depois podemos sempre acentuar a nossa particular vocação para erigir estadistas e homens providenciais, "o hábito da irresponsabilidade" e o "culto espontâneo" do narcisismo de certos atores políticos, que "não encontram no juízo público a sanção que seria normal, mas o aplauso vertiginoso" do lixo das redes sociais. Ainda há dias, André Ventura, no parlamento, conseguiu votar a favor, votar contra e abster-se em relação a um mesmo assunto.

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