Diário do Alentejo

Elegia a António Saleiro
Opinião

Elegia a António Saleiro

Jorge Barnabé, empresário

13 de julho 2020 - 20:00

 

Ensina-nos a vida que esperaremos pela morte, para que pela morte se vislumbre justiça e reconhecimento. É quase sempre assim, raramente é ao contrário. Esta elegia não é um poema triste, mas é lamento fundo na evocação póstuma de uma figura pública forte e intensa, que nos deixa para sempre. E na sua morte ficam lembranças, memórias que o tempo cuidará, espero eu, com maior justiça e verdade. Na sua vida ficou um legado de esperança, de futuro e de ambição. E é essa realidade extasiante e lamentada que hoje pretendo refletir.

 

O António Saleiro não estava entre os comuns, o que não faz nem nunca fez dele superior ou indestrutível, mas a sua natureza era única, uma intensidade tal nas palavras e nos gestos, uma visão da política e da sociedade muito avançada em qualquer contexto.

 

Em 1993, quando aderi ao PS, o Saleiro foi das primeiras pessoas que conheci, juntamente com o Nicolau e o Carlos Queixinhas, apresentado pelo Francisco George. Fiquei extasiado a ouvi-lo, respirava convicção e determinação, apontava em frente sem medo, sem temor. Aquele momento ainda me deu mais confiança na decisão que tinha tomado de aderir ao PS, vindo de uma família comunista. Desde aquele instante que o seu trato sempre foi cordial e simpático, com respeito por um jovem de 18 anos, estimulando-me a participar e a fazer.

 

Fazer, era essa a outra força do Saleiro, não se ficava pelas palavras, tudo tinha que ter uma ação consequente. E isso, reconheçamos, se hoje ainda é raro nos políticos mais raro era na altura, evidenciando assim uma personalidade forte e distinta. Quis o destino que uns meses mais tarde, sempre intermediado pelo Francisco George, começasse a trabalhar mais próximo do Saleiro e da sua equipa, reestruturando o núcleo de Beja da JS, com o António Amaral, a Filomena, o Paulo Arsénio, entre outros.

 

E nesta pressa de fazer, que nos entusiasmava, preparava-se o caminho para um grande momento: as eleições legislativas de 1995. Dessa equipa do António Saleiro faziam parte muitos jovens como o Paulo Capela, o Pedro do Carmo, o Gavino Paixão, o Fernando Romba, o António Nascimento, o Sardica, o Mariano, o Paulo Arsénio, entre outros.

 

Em 1995 o Partido Socialista não se limitou a ganhar as eleições no distrito de Beja. Impôs uma nova visão política, com argumentos, com visão, com um elo comum que mobilizava o povo. O Baixo Alentejo passou a ser o elemento central de tudo, de todos, até da diferença entre o PS e o PCP e que anos mais tarde, em consequência deste momento, passou a razão de ser da perda de hegemonia do PCP na região. Como ainda hoje se acentua. Este pequeno grande pormenor é mérito inequívoco e poucas vezes relevado do António Saleiro. Foi ele o visionário, o arrojado e corajoso político que liderou equipas e mobilizou a sociedade.

 

Nunca, como nessa altura, o Baixo Alentejo teve uma voz tão forte, tão determinada. E o que desses dias sobrou foi muito mais que esperança, foram novas gerações e novas visões acreditando que o Baixo Alentejo tem vida própria, e alma e força. E tem, como tantas vezes nos prometeu!

 

António Saleiro defendeu e executou como líder toda esta visão assumindo determinação e solidariedade como princípios da sua relação com os outros. E ouvia os outros, muitas vezes. Existe a ideia que era egocêntrico e decidia sozinho. Isso não é verdade. Entre aquela muralha de convencimento e liderança, o Saleiro ouvia os outros, chamava todos constantemente para ouvir opiniões, para partilhar preocupações. E decidia, decidia ele que era a quem competia decidir. Mas ouvia. E decidia. Sabia decidir. Disse-me muitas vezes no meio dos meus medos como jovem delegado do Inatel aos 21 anos: “Puto! Mais vale uma má decisão que decisão nenhuma!”. Aprendi com ele muito, acentuei convicção e sobretudo a noção de que a política só serve se servir as causas públicas.

 

O caminho fez-se sempre num romântico estado de graça de uma nova esperança para o Baixo Alentejo e António Saleiro era o rosto e a voz dessa esperança. Combativo, solidário, sempre solidário, amigo e político. Respirava política em tudo, em todos os seus gestos e poses. Foi ele que tantas vezes deu murros na mesa para defender os seus, nós. Foi ele que tantas vezes afrontou ministros e primeiro-ministro na defesa da região. Foi ele que construiu a imagem de uma região própria, que não se resignava, que não se deixava subjugar a outros interesses que não fossem os do próprio Baixo Alentejo.

 

E foi com ele que nasceu o “Triângulo do Desenvolvimento”, a definição de um projeto estruturante para a região, que promovesse a coesão e estimulasse o desenvolvimento económico, o investimento público em primeiro lugar e o privado consequentemente. Se hoje se fala de autoestrada e do aeroporto de Beja, deve-se saber reconhecer a sua origem. E se Saleiro não fosse o Saleiro, governador civil e político influente, provavelmente nada disto teria saído de um programa eleitoral.

 

Há muito de António Saleiro no Baixo Alentejo desde a década de 1990. Há hoje frutos de muitas sementes que lançou na época com as suas equipas, com a sua liderança...

 

Mas os homens fortes também caiem, tornam-se alvos de tantos interesses obscuros e silenciosos da nossa sociedade. Sempre vi em todos os seus gestos e discurso absoluta seriedade. Incitou-nos sempre, aos que ocupavam os cargos políticos e partidários, a termos comportamentos inquestionáveis e em nunca deixarmos de servir a causa pública e o PS.

 

Não me cabe defender o António Saleiro de um processo que a justiça reconheceu como inexistente. A justiça funcionou, a reposição da verdade da figura pública é que não! Mas tenho o dever, como amigo e como cidadão que com ele conviveu e que o admira de evocar um processo nojento e de assassinato político, que destruiu um cidadão que fez por nós aquilo que outros nunca fizeram, que nos defendeu como ninguém. Porque alguns queriam que nada se fizesse nesta terra!

 

Passei há um ano por uma pequena parte dessa injustiça. Mas não imagino o que é tudo aquilo que lhe aconteceu. A amargura, a dor, a angústia. Sei o que sofre a família, sei as marcas que ficam. E tantas vezes pensei nele, na sua voz firme e eloquente que nos tranquilizava na adversidade. Com ele aprendi que adversidade é uma oportunidade de recomeçar com mais força…

 

O Saleiro, combativo e indignado não se resignou, reinventou-se noutras causas, licenciou-se em direito, fez-se advogado e professor. Feliz. Encontrei-o feliz há uns tempos. Falámos há uns dias. Debilitado, mas a querer vencer! “Puto! Este não me vencerá… “

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