Diário do Alentejo

Francisco Ferreira diz que há populações “em risco de exposição a pesticidas”

23 de março 2020 - 20:17

Membros da direção da ZERO-Associação Sistema Terrestre Sustentável estiveram, recentemente, de visita ao distrito de Beja, com o objetivo de, no terreno, conhecer “os problemas ambientais relacionados com a implementação dos perímetros de rega da área de influência do projeto de Alqueva”. O itinerário incluiu uma passagem por Alfundão, Beringel, Boavista, Trindade, Salvada, Quintos, Baleizão e Neves, terminando com um encontro com elementos do Movimento Alentejo VIVO na cidade de Beja. O “Diário do Alentejo” falou com Francisco Ferreira, presidente da associação, que critica veementemente a forma como está a ser implementado o novo paradigma de produção agrícola na região e fala das consequências nocivas que este revela para as populações e para o meio ambiente.

Texto: José Serrano

 

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Qual a impressão generalizada com que ficou depois desta visita aos “campos” do Baixo Alentejo?

A primeira impressão para quem aqui chega é marcada pela visão dos contínuos de olival intensivo, a criar uma paisagem mais simplificada onde vai desaparecendo o mosaico cultural que no nosso imaginário corresponde a esta região do Baixo Alentejo. Numa análise mais técnica e detalhada conseguimo- -nos aperceber daquilo que esta mudança representa do ponto de vista ambiental, económico e social, pondo em causa os princípios de um desenvolvimento sustentável da região.

Como analisa a associação ZERO a intensificação das culturas do olival e amendoal na região?

Dentro dos blocos de rega infraestruturados já era esperada a intensificação cultural, fruto da disponibilização da água e da procura de rentabilizar ao máximo o investimento. Do ponto de vista agronómico questionamos a dominância destas duas culturas (cerca de 80 por cento da área beneficiada), usando inclusive solos dos barros de Beja onde ainda se poderia produzir cereais, em detrimento de um mosaico cultural diversificado com aproveitamento racional dos recursos o que é marcadamente uma das grandes falhas do investimento público de Alqueva que deveria contribuir de forma determinante para a segurança e soberania alimentares da região e do País. Pelo contrário, seguiu-se a via da agricultura industrial, focada na produção especializada de mercadorias para exportação que, em última instância, fragiliza o sector agrícola, sujeitando-o às oscilações dos mercados externos, potenciando o efeito dos riscos biológicos, fomentando a concentração da terra e colocando pressões desnecessárias sobre os agroecossistemas de que dependem. A riqueza gerada está concentrada em alguns grandes grupos económicos e com grande dependência de mão-de-obra de migrantes, em condições laborais que têm propiciado a exploração destas pessoas. Não compreendemos como é que se avançou para uma segunda fase do Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva (EFMA), com mais 50 000 hectares quando os dados climáticos apontam para menos pluviosidade e disponibilidade hídrica no futuro, sabendo que mesmo nas circunstâncias atuais a dotação prevista para os 200 000 hectares a regar já deixam o sistema sem margem de segurança face ao volume de água autorizado à Empresa De Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva (EDIA) para utilização anual.

 

Registou como consequência destas monoculturas intensivas e superintensivas impactes para o meio ambiente?

 

Neste modelo há uma agravante importante que resulta do facto da implementação destas culturas transcender os perímetros de rega, abrangendo áreas sensíveis do ponto de vista ambiental, sem que tenha existido aí qualquer avaliação dos seus impactes. É evidente a erosão do solo nos amendoais e olivais intensivos instalados em declives, sobretudo quando a orientação dos camalhões o propicia, o que é frequente. Esta é uma situação extremamente séria, isto numa região onde o problema da desertificação é evidente. Outra realidade chocante é o desrespeito pelas linhas de água e suas margens. Vi ribeiras transformadas em meras valas de drenagem, completamente despidas de vegetação com as margens muitas vezes completamente ocupadas pela cultura ou transformadas em caminhos. A mudança do regime cultural, com a simplificação estrutural da paisagem e a ausência de descontínuos na paisagem levou à perda de diversidade agrícola e paisagística e contribuiu diretamente para a perda de biodiversidade, já quase irreversível em muitos casos, do ponto de vista da flora. Também nos preocupa, e carece de mais estudo, o impacto do trabalho de apanha mecânico noturno na avifauna. Apesar da obrigatoriedade de cumprimento dos princípios da proteção integrada, que defendem a adoção de todas as estratégias e medidas disponíveis para que o uso de pesticidas seja feito apenas em último caso, observamos que a maior parte das explorações não tem descontínuos na paisagem eficazes para a conservação da biodiversidade, particularmente no que respeita aos organismos auxiliares que fazem o controlo das pragas que afetam as culturas perdendo-se os serviços dos ecossistemas que daí advêm.

Refletem-se, ou poder-se-ão refletir, esses impactes na saúde humana?

Claro que sim. Mais diretamente existem riscos associados à proximidade destas culturas às localidades. É o caso de Alfundão, da Trindade, de Quintos e de Nossa Senhora das Neves, onde vimos, no nosso périplo, amendoais e olivais intensivos a poucos metros das habitações, o que significa que a população está em risco de exposição a pesticidas, por deriva. Falámos com a população que afirma sentir, com frequência, o cheiro destes produtos, o que significa que existe de facto exposição. A jusante da produção do olival intensivo a geração crescente de resíduos nos lagares torna necessário que as unidades de extração de óleo de bagaço existentes e a instalar sejam obrigadas a usar a melhor tecnologia para limitar a poluição associada à sua laboração e que se avalie o seu impacte ambiental.A proteção de captações de água subterrânea para consumo público, também devia ser acautelada e sabemos que nalguns casos tal não foi considerado como aconteceu em Quintos até há pouco tempo atrás. Assistimos também à instalação das culturas sem respeito pela faixa de proteção das albufeiras para abastecimento público de água para consumo humano, e pelo que me foi reportado tal acontece no Roxo, no Enxoé e nas linhas de água que as alimentam.

Quais as principais preocupações que as populações rurais lhe transmitiram relativamente a este novo paradigma de produção agrícola?

 

Tivemos a oportunidade de conversar com vários habitantes de algumas das localidades que fizeram parte do nosso trajeto. Na aldeia de Fortes, a quem deixo o meu elogio à população pela capacidade de luta que têm demonstrado, é a poluição do ar pela unidade industrial aí existente que marcou a nossa conversa. Noutros locais foi a proximidade da aplicação de pesticidas a maior preocupação, mas também a destruição e corte de caminhos públicos. As preocupações são muitas, sobretudo no que diz respeito à saúde e qualidade de vida e ouvimos pessoas que ponderam seriamente sair das suas casas, que deixaram de ter um sítio de sossego e de vida sadia que procuravam, quer seja para os anos de velhice quer para o início de um projeto de vida.

 

Do que observou quais os casos que lhe parecem merecer uma maior preocupação?

 

Na aldeia de Fortes é evidente o impacto da unidade de extração de óleo de bagaço de azeitona na qualidade de vida da população. Na Trindade vamos analisar com toda atenção a forma como as condutas e uma grande plantação de olival foi aí instalada recentemente, mesmo até à orla da aldeia e com caminhos públicos destruídos. Isto numa área que está proposta para integrar parcialmente o novo bloco da Cabeça Gorda - Trindade mas a avaliação de impacte ambiental ainda nem sequer teve discussão pública, aparecendo no entanto na informação da própria EDIA já como área afeta ao projeto. Em Santa Clara de Louredo e Quintos as povoações vão sendo cercadas por culturas até ao perímetro urbano e, pelo que sabemos, isto passa-se num concelho onde até o Plano Diretor Municipal (PDM) prevê que seja necessário ao promotor a apresentação de um estudo de impacto paisagístico e sanitário para as instalações que pretendam situar-se numa faixa de 250 metros da orla do perímetro urbano das aldeias. É também preocupante o facto de áreas de montado, de azinheiras e sobreiros que naturalmente ficaram de fora dos blocos de rega, estarem a ser ocupadas pelas culturas intensivas, seja com destruição completa dos montados ou com instalação de culturas permanentes no sobcoberto das árvores remanescentes.

 

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Disse em declarações à “Rádio Voz da Planície” que sai desta visita com a imagem de que existe “um conjunto de entidades que não estão a cumprir a sua função”. Que entidades são essas e quais as funções que, no seu entender, incumprem?

De uma forma breve poderei apontar as câmaras municipais pelo incumprimento dos PDM, a EDIA quando fornece água em locais com condicionantes à intensificação agrícola, a DRAP Alentejo por não supervisionar as más práticas agrícolas. Por outro lado a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional Alentejo que devia supervisionar a aplicação dos instrumentos de ordenamento em vigor, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas que deve ter uma atitude mais interventiva nas questões associadas à conservação da natureza e dos montados ou a Agência Portuguesa do Ambiente no que concerne aos atentados à rede hidrográfica regional.

Qual a razão, na sua perspetiva, das várias negligência que aponta?

 

Essas negligências resultam principalmente da necessidade política de acelerar todo o processo de implementação deste projeto, uma necessidade de mostrar o êxito das opções tomadas, cedendo à pressão dos investidores sem ter em conta a necessidade de acautelar o respeito pelos instrumentos de ordenamento em vigor e pelas boas práticas agrícolas e de dotar os serviços da capacidade de acompanhamento e fiscalização. Um projeto desta dimensão devia ter um planeamento e acompanhamento mais presente e efetivo com maior interligação entre todas estas entidades.

Em finais de 2019 a ZERO denunciou que em alguns concelhos da região, nomeadamente em Beja, Ferreira do Alentejo e Serpa, foram instaladas culturas intensivas que violaram os planos diretores municipais. Mantem a ZERO essa acusação?

Não só persistem estes incumprimentos como as violações são mais numerosas. Na altura falávamos de cerca de 5 000 hectares em possível violação dos PDM, hoje o nosso levantamento aponta para o dobro, integrando neste valor áreas afetas aos chamados precários a quem a EDIA contratualiza o fornecimento de água fora dos blocos de rega. Se os presidentes de câmara continuarem a ignorar as suas responsabilidades nesta matéria, juntamente com a permissividade que outras entidades têm demonstrado, permite-se que reine a impunidade e os casos vão-se continuar a multiplicar.

Depois desta visita, quais as respostas que a associação ZERO tem previstas no sentido de se poder inverter as situações de incumprimento e incúria por si elencadas?

O trabalho aqui na região é efetuado no âmbito da nossa participação no Movimento Alentejo VIVO e vai continuar com mais trabalho de levantamento e acompanhamento de casos concretos e contacto com as populações locais. Temos enviado pedidos de informação a diversas entidades, a maioria ainda sem resposta, e está a ser preparado um dossiê com os casos mais flagrantes, para enviar à Inspeção Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, que demonstram a necessidade de uma auditoria, por forma a se verificar como tem decorrido todo este processo de implementação dos perímetros de rega e a atuação de todas as entidades envolvidas no processo. Estamos a analisar todas as vias de ação.

 

AEROPORTO DE BEJA COMO “PARTE DA EQUAÇÃO”

A ZERO tem sido uma voz bastante crítica relativamente à construção de um novo aeroporto no Montijo, considerando-o uma visão “completamente contra a sustentabilidade do planeta”. Ultimamente, têm-se registado um crescendo de vozes a equacionar o aeroporto de Beja como uma possível solução alternativa. André Silva, deputado do PAN, disse este mês, em entrevista à RTP, que o aeroporto de Beja, ligado a uma linha ferroviária de alta velocidade, “poderia e deveria ser uma verdadeira alternativa [como aeroporto complementar ao aeroporto de Lisboa] ”. Qual a opinião que a ZERO tem sobre esta possibilidade alternativa?

Em nosso entender é crucial uma avaliação estratégica das infraestruturas aeroportuárias da região de Lisboa dada a impossibilidade do Aeroporto Humberto Delgado conseguir cumprir, agora e num eventual futuro com mais aviões, a legislação associada ao ruído e pelos impactes que em termos de ordenamento tem no centro da cidade de Lisboa. O Montijo é uma opção frágil e conflituosa em diversos aspetos, nomeadamente no que respeita à proximidade do Estuário do Tejo. Continuamos assim a pugnar por uma discussão integrada de médio/longo prazo, onde todas as opções estejam efetivamente em aberto, e onde por isso admitimos que o aeroporto de Beja, como opção complementar à região de Lisboa, possa também fazer parte da equação.

 

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