Diário do Alentejo

Entrevista a Carlos Moedas em fim de mandato

22 de novembro 2019 - 10:30
Comissário europeu para a Investigação, Ciência e Inovação

O “Diário do Alentejo”, integrando a comitiva que na passada semana apresentou em Bruxelas, no Parlamento Europeu, algumas das reivindicações da região, conversou com o ainda comissário europeu para a Investigação, Ciência e Inovação, Carlos Moedas. Um encontro em que o político bejense falou acerca do legado que deixa, da sua visão da Europa, da atualidade do Baixo Alentejo, da importância dos movimentos de cidadãos. E da sua cidade, que será sempre, diz, Beja.

 

Texto e foto José Serrano

 

A uma semana do término do seu mandato como comissário europeu, o que mudou desde que há cinco anos assumiu a pasta da Investigação, Ciência e Inovação da União Europeia (UE)?

A única saída que eu vejo para a Europa é investir e focar-se mais na inovação e na ciência, afinal foi sempre essa a nossa história. No mundo em que vivemos, a única maneira de poder fazer a diferença é criando valor através de novas ideias. A única maneira de criar emprego e riqueza é apostar em produtos ainda não imaginados por outros e dessa forma poder-se pagar melhores salários. A inovação e a ciência são instrumentos políticos muito fortes e eu penso que os políticos europeus não se tinham ainda apercebido da sua real capacidade na criação de riqueza. Desde o início, a minha mensagem foi levar, a todos os países, algo que é fundamentalmente técnico para uma mensagem política, para dar, no fundo, uma direção à Europa. Quando assumi o cargo, em 2014, houve quem questionasse a importância desta pasta, ainda que fosse a pasta mais importante para o nosso futuro. O cargo de ministro da Ciência não era sequer muito importante no elenco governamental da maior parte dos países, era um posto técnico. Hoje há uma outra consciência.

A aprovação, em abril, do Programa Horizonte Europa, que apoiará a investigação científica na UE, de 2021 a 2027, é um exemplo dessa tomada de consciência?

O Horizonte Europa, com um orçamento de 100 mil milhões de euros, constitui o maior programa de financiamento de sempre, no mundo, direcionado a atividades de investigação e inovação. Ter conquistado o Parlamento [Europeu], os países a permitirem-me trabalhar com base nessa proposta, é um dos maiores legados que aqui posso deixar.

Quais as principais diferenças que o programa Horizonte Europa terá relativamente ao seu antecessor, o Horizonte 2020, também da sua responsabilidade?

Historicamente, a comissão só dava bolsas a cientistas e investigadores, o que é uma condição necessária para o nosso futuro, obviamente. Mas a Europa falhava muito na área da inovação. Com este programa foi criado o Conselho Europeu da Inovação que dará oportunidade aos inovadores de criar empresas, de criar emprego de uma forma que não existia. Para ser mais concreto: um empreendedor no Alentejo pode enviar a sua candidatura expondo uma determinada ideia. Se a ideia for aprovada, é-lhe dado financiamento para a desenvolver, 50 mil euros, inicialmente. Se, ao fim de uma ano, as coisas correrem bem o financiamento poderá chegar aos dois, três milhões de euros. No Alentejo haverá jovens com ideias fantásticas entre o mundo digital e o mundo da agricultura, por exemplo, que aconselho a que se candidatem a este programa, a este novo paradigma de apoio.

Como tem assistido à parceria, no Alentejo, entre as instituições de ensino superior e as empresas?

Há em Portugal uma certa dificuldade na relação entre as empresas e as universidades e politécnicos. Durante anos viveram de costas voltadas. Inverter essa situação é fundamental e penso que o Instituto Politécnico de Beja tem dado alguns passos nesse sentido. Mas tem de se fazer muito mais. As empresas têm de ir buscar professores aos polos de ensino superior para trabalharem num ambiente empresarial. Ao mesmo tempo, as universidades, os politécnicos, deverão recrutar empresários, que até podem não ser licenciados, para dar aulas. Na nossa região, como noutras em Portugal, esse tem sido um passo difícil de dar porque o tecido empresarial escasseia. Mas creio que o ensino superior do futuro vai ser baseado muito mais nessa relação binária.

O Alentejo perdeu, entre 2001 e 2017, 62 mil habitantes, 12 por cento da população, com o Baixo Alentejo a perder cerca de 1000 habitantes por ano. Que análise faz destes números?

A crise demográfica não é exclusiva do Alentejo, mas sim um problema da Europa. Há 50 anos atrás o mundo tinha sensivelmente metade da população que tem hoje, sete mil milhões. Mas todo esse crescimento populacional aconteceu fora da Europa. Uma das coisas que me irrita no discurso populista europeu é saber qual é o problema de receber, numa plataforma com 500 milhões de habitantes, um, dois ou mesmo cinco milhões de imigrantes. É uma gota de água num oceano que precisa de mais água. O crescimento económico da Europa dependerá do seu crescimento populacional, que não está a acontecer porque as pessoas têm cada vez menos filhos. A imigração só poderá ser, matematicamente, um fator positivo. Um discurso de medo sobre essa matéria é totalmente contraditório. Eu tenho medo é de não ter população, não de ter mais. Onde não há gente não há empregos. A demografia é um dos principais desafios europeus e só pode ser ganho se aceitarmos que precisamos de mais pessoas. Esta mensagem política nem sempre é compreendida, a linguagem dos populistas é precisamente a contrária. Uma vez disse isto em França e recebi um comunicado de imprensa da Marine Le Pen contra mim. O que achei uma coisa positiva e guardei como recordação.

Como antevê o futuro da UE, com a extrema-direita a aumentar o seu número de eurodeputados, com o crescimento dos partidos eurocéticos e com a iminente saída do Reino Unido?

A génese da UE, em 1950, corresponde a uma ideia de multilateralismo superior em que um grupo de países, ao invés de cada um lutar individualmente pelos seus interesses, decide lutar pelo interesse comum. Este é um dos projetos mais fascinantes da humanidade, se olharmos para a realidade que o antecede: 400 anos de histórias de guerras em que nos matámos, na Europa, uns aos outros. De certa forma, este projeto, na sua totalidade, é irreversível. Os europeus só podem ter futuro se dentro de um projeto comum, porque quanto mais avançamos no tempo mais nos apercebemos que os problemas com os quais nos deparamos não podem ser resolvidos ao nível nacional. Não se pode hoje tomar decisões relativas à qualidade do ar, à qualidade da água ou à cibersegurança, só para dar alguns exemplos, país a país. Num mundo global e digital não faz sentido nenhum. A ideia do populismo e do nacionalismo é uma ideia tão retrógrada…

Encontrou-se no Parlamento Europeu, a convite desta instituição, com uma comitiva do movimento de cidadãos Beja Merece+, que se faz acompanhar de empresários, jornalistas, académicos, profissionais de saúde, empresários, para apresentar à Europa as suas reivindicações. Como olha para este movimento, com génese na sua cidade?

Eu considero-me parte deste movimento. O Florival Baiôa [membro fundador do Beja Merece+] é um fora de série. Pela resiliência de continuar a lutar, de nunca desistir daquela que é a nossa terra. Beja deve-lhe este mundo e o outro. A verdade é que quando estou com ele sinto-me muito pequenino, porque embora faça coisas de muita responsabilidade, que têm muito impacto, faço-as com recursos. Fazer o “barulho” que ele faz, com o movimento sem, praticamente, recursos nenhuns, é algo de espetacular. Se todos os portugueses se unissem em torno de movimentos cívicos semelhantes, estou convencido de que o País avançava muito mais do que com os políticos. A nossa sociedade ainda não desenvolveu essa capacidade de os cidadãos se juntarem por falta de resposta do Estado, de nos questionarmos como havemos de lutar por aquilo que queremos. Tenho um enorme respeito e admiração pelo Beja Merece+ e tudo aquilo que puder fazer para ajudar, fá-lo-ei.

Qual a importância que esta visita, ao Parlamento Europeu, poderá ter no sentido de o movimento ver as suas reivindicações satisfeitas, nomeadamente, melhores acessos rodo e ferroviários, melhores cuidados de saúde ou um mais eficiente aproveitamento do aeroporto de Beja?

O Beja Merece+ tem percorrido o seu caminho, devagar mas consistentemente. “Não largando”, criando consciência política. Uma cidade como Beja, uma região como a nossa, tem de ter bons serviços e tem de estar ligada à capital. A importância desta visita é trazer estas reivindicações ao nível da Europa, é no fundo criar pressão política através da divulgação do que está a acontecer. Esta é a única maneira, porque a política só muda se as pessoas forem pressionando, sem necessidade de “partir tudo”, de forma positiva, como este movimento o faz. É um bocadinho a lógica da água mole em pedra dura: “Nós estamos aqui, amanhã voltaremos aqui, não sairemos daqui porque isto vai ter que ser resolvido”. E há uma altura em que as coisas se têm de fazer. Trazer este protesto ao Parlamento Europeu vai ter de certeza impacto, para se chegar ao objetivo final. Esta visita constitui também um upgrade da representação do Alentejo no Parlamento Europeu, uma alavanca que o movimento pode utilizar. A visita de hoje é apenas um primeiro passo.

 

No artigo 3.º do Tratado da União Europeia está escrito que “a União promove a coesão económica, social, e territorial, e a solidariedade entre os estados membros”. Considera que, no caso do Alentejo, e em particular do Baixo Alentejo, essa coesão territorial tem sido salvaguardada?

A Europa tem tido nesse aspeto um papel extraordinário, por via dos fundos estruturais. Portugal recebeu, em média, nove milhões de euros por dia, nos últimos 30 anos. A Europa cria a capacidade para a conclusão de infraestruturas mas depois compete a cada um dos países implementar políticas, decididas ao nível nacional, capazes de incentivar as pessoas a quererem viver no interior. É preciso ver quais são as mais-valias que o Alentejo tem em termos de ciência, de inovação, de agricultura. É nisso que nos devemos focalizar, se não vamos ter um País com só com litoral, e o resto é deserto.

 

Considera por isso lícita a urgência das reivindicações do movimento?

Sem dúvida! Todas essas reivindicações, que sempre apoiei e continuo a apoiar, são benéficas não apenas para a região mas para o País. Beja tem de ser vista como parte da solução, é esse o ponto. Mas realmente temos vivido tempos difíceis, sem um empurrão político…

 

E agora, depois de terminar o seu mandato como comissário europeu, quais os novos desafios a que se propõe? Fala-se do PSD, das fundações Gulbenkian e Champalimaud …

Em princípio irei para a Fundação Gulbenkian. Mas por tudo aquilo que é o meu respeito pela instituição europeia, preciso de ter uma autorização da Comissão Europeia, em termos de conflitos de interesse. Mas creio que não existirá qualquer conflito.

 

Porquê esta decisão?

A política apaixona-me pela capacidade de poder melhorar a vida das pessoas e penso que a Fundação Gulbenkian me permitirá continuar a fazer exatamente isso. Eu acho que neste momento é o sítio onde eu poderei continuar a contribuir para mudar, ao nível social, a vida das pessoas.

 

Continua a ir a Beja?

Sim, muitas vezes. Tenho lá a minha mãe e a minha irmã.

 

Como olha atualmente para a sua cidade?

Vejo uma certa tristeza nas pessoas por considerarem que as coisas não avançam, que as oportunidades não estão na região. Grande parte dos jovens saem de lá para estudar e depois já não volta. Isso entristece-me. Ainda assim acho que há alguns bons exemplos de inovação e tecnologia. A grande questão é saber como é que multiplicamos esses exemplos, para que a oportunidade não seja só ir estudar para Lisboa, e ficar por lá.

 

O regresso a Beja é uma opção?

Costumo dizer que depois da minha vida profissional espero ir para Beja. Tentar contribuir para a notoriedade da cidade, do politécnico, das empresas… Já que escolhi este caminho, de visibilidade pública e política, que haja uma altura da minha vida para, como cidadão, ajudar para o desenvolvimento de Beja. Note-se que não estou com isto a anunciar qualquer tipo de candidatura.

 

Ainda assim é expectável que, a confirmar-se a sua vinda para Lisboa, possa vir a ser mais interventivo em relação aos problemas que se colocam à região?

Sem dúvida. Estando em Portugal, acho que vou poder ajudar muito mais, estar mais perto da minha terra. Saí de Beja com 18 anos e nunca mais lá vivi, mas a ligação com a cidade manteve-se sempre muito forte, tenho sempre muitas saudades de Beja. E tenho esperança no seu desenvolvimento. No mundo digital não haveria razão para dizermos que Beja está no interior. A questão é que nós não vivemos ainda nesse mundo. Ainda estamos a cavalo entre o antigo e o novo.

 

 

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