Diário do Alentejo

Ataque ao consumo de carne de vaca “é chico-espertice”

28 de setembro 2019 - 11:00

A Faaba reagiu à decisão da Universidade de Coimbra de eliminar a carne de vaca nas cantinas da instituição, a partir de 2020. As declarações de que essa seria “uma forma de diminuir a fonte de maior produção de dióxido de carbono que existe ao nível da produção de carne”, apresentadas de forma “descontextualizada”, são “enganosas”. A federação afirma que, embora seja reconhecida a emissão de gases de efeito de estufa por parte dos bovinos, os sistemas de produção desta espécie, associados ao pastoreio, contribuem de forma muito positiva para o sequestro de dióxido de carbono e para o aumento da matéria orgânica e fertilidade dos solos.

 

Texto Carlos Lopes Pereira

 

A Universidade de Coimbra (UC) vai eliminar o consumo de carne de vaca nas cantinas universitárias a partir de 2020, anunciou o reitor, Amílcar Falcão. Será o primeiro passo para, até 2030, tornar a UC “a primeira universidade portuguesa neutra em carbono”, disse o reitor numa cerimónia de receção aos estudantes, no dia 17. A carne de vaca será substituída “por outros nutrientes que irão ser estudados”, sendo esta “uma forma de diminuir aquela que é a fonte de maior produção de CO2 [dióxido de carbono] que existe ao nível da produção de carne animal”, explicou.

A decisão e as declarações de Amílcar Falcão provocaram reações acaloradas. A Associação Académica de Coimbra apoiou: “A medida não vai resolver” o problema das alterações climáticas mas “é importante na consciencialização do meio académico”. Organizações do setor agrícola, como a Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), contestaram com mais ou menos veemência. A Confederação Nacional das Cooperativas Agrícolas e do Crédito Agrícola de Portugal (Confagri) repudiou o “radicalismo” do reitor e classificou a decisão de “autoritária e populista”, sem adequada “sustentação científica”.

 

Partidos como PSD, CDS e Aliança manifestaram-se contra. Em Beja, o deputado Pedro do Carmo, do PS, escreveu que “o populismo pseudo-ambiental” da UC prestou “um mau serviço à coesão territorial e a uma sociedade com equilíbrios justamente distribuídos”. O Governo dividiu-se: o ministro da Agricultura, Capoulas Santos, criticou (“não deixa de ser amargo constatar que até as vetustas paredes da centenária academia são permeáveis ao populismo e à demagogia”). O do Ambiente, Matos Fernandes, elogiou (“parece-me relevante que uma universidade, neste caso a de Coimbra, tudo faça com o objetivo de ser neutra em carbono em 2030”).

 

O presidente da Federação das Associações de Agricultores do Baixo Alentejo (Faaba), Rui Garrido, reclamou “ética e honestidade intelectual em defesa do setor agrícola”. Considerou que “declarações infundadas, precipitadas, sensacionalistas, com promoção de inverdades, só porque caem bem na opinião pública são, no mínimo, escandalosas”. Destacou que “há evidência científica que demonstra os benefícios ambientais e sociais da atividade agrícola no combate à desertificação, ao despovoamento rural e à promoção da biodiversidade nos nossos ecossistemas” e que “estão comprovadas as mais-valias do pastoreio e das pastagens na prevenção contra incêndios, no enriquecimento do solo em matéria orgânica, no seu contributo objetivo para o sequestro de carbono e para as metas da neutralidade carbónica”. E lembrou que “há reconhecidas organizações internacionais a demonstrar que o consumo adequado de carne é benéfico para a saúde”, sendo prova disso a distinção da dieta mediterrânica, onde se inclui a carne de vaca, como uma das mais saudáveis e equilibradas do mundo, agora inscrita pela Unesco na lista representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade”.

 

João Madeira gere com o irmão – um é agrónomo, outro veterinário – uma empresa com cerca de 900 hectares de terra, “toda no concelho de Mértola, toda dentro do Parque Natural do Vale do Guadiana, toda de sequeiro, e toda difícil”, com sede em Corte do Gafo de Cima. A propriedade cria gado – ovino, o maior produto da empresa, e bovino, um efetivo pequeno, cerca de meia centena de vacas adultas em 100 hectares – e produz “tudo aquilo que o gado come”.

 

Explica: “Nós exploramos uma raça autóctone, a raça Alentejana, em linha pura. Estamos integrados num agrupamento de produtores, uma sociedade anónima constituída por agricultores, por produtores daquela raça, que coloca toda a produção no mercado, sobretudo nacional, e é, simultaneamente, uma denominação de origem protegida (DOP). Escoamos toda a produção bovina, que sai certificada, neste caso até duplamente certificada: sai em produção integrada, por um lado, e com denominação de origem protegida, por outro”.

Quanto à decisão do reitor de Coimbra sobre o fim anunciado da carne de vaca nas cantinas da UC, João Madeira admite que “as vacas são só o precursor, estão na berlinda, a seguir vai tudo o que é ruminante, vai tudo atrás, temos de nos preparar”. Entende que há uma visão descontextualizada do problema, “o que o reitor disse não está errado mas é completamente descontextualizado”. O problema das emissões de gases de efeito de estufa (GEE) é complexo e não se pode reduzir a uma abordagem simplista:

 

“A justificação do reitor omite as proporções dos contributos dos vários setores. Agarra-se a um setor, o agrícola – nem sequer é preciso descer à pecuária –, que é responsável por cerca de 12,5 por cento das emissões. Estes são dados que serviram de base aos cálculos utilizados no Roteiro para a Neutralidade Carbónica, um documento oficial. Então, e os outros 87,5 por cento? Designadamente, os setores da energia e dos transportes, que acumulam quase 70 por cento do total de emissões? É fácil acusar um setor que tem fama de estar mal organizado, em termos de voz mediática, e que do ponto de vista dos produtores não tem nenhuma grande corporação por trás”.

 

Esta é uma dimensão do simplismo. “A outra é ignorar todas as dificuldades metodológicas que têm sido detetadas ao longo do tempo, desde o primeiro estudo da FAO, na abordagem de um problema que nenhuma das organizações de agricultores nega. O problema é de tal modo complexo que a metodologia para o dimensionar tem vindo a mudar. A versão que foi posta a consulta pública, do Roteiro para a Neutralidade Carbónica, difere significativamente do documento aprovado, a metodologia teve de ser corrigida. As organizações de agricultores apontaram uma série de vieses à metodologia seguida, que forçaram, porque eram óbvios, a equipa técnica a corrigir muita coisa. Por um lado, na bovinicultura estavam a considerar todos os bovinos, quando sabemos que há uma linha que divide o intensivo do extensivo. O animal que vive do saco e o animal que vive da pastagem são duas coisas radicalmente diferentes. E, por outro lado – esse aspeto ainda não foi completamente corrigido, embora tenha sido ajustado –, era dada importância desproporcionada à vertente emissora da bovinicultura, em detrimento da sequestradora, que por acaso está contabilizada noutro agregado, está fora da agricultura, agarrada ao uso florestal. Toda a pecuária feita em pastagens tem uma dimensão emissora de GEE e uma função sequestradora de CO2. Quando se contabiliza, por um lado, o que emite, mas por outro, contabiliza-se à parte o que o sistema emissor também sequestra, resulta uma dimensão desproporcionada do problema”.

Para João Madeira, o reitor da UC simplificou um problema complexo como o da emissão de gases com efeito de estufa e, de um modo geral, das alterações climáticas, que desafia os cientistas de todo o mundo: “É um bocadinho uma saloiice, uma chico-espertice – não negando que o problema existe e que temos de o encarar e de o resolver”.

 

Em suma, “a decisão da UC é descontextualizada e inútil, desnecessária, de efeito marginal. No essencial, é desequilibrada e injusta. Primeiro, porque deixa os fortes de fora e, depois, porque, podendo não ser intencional, o ónus recai sobre um setor que vive nos 85 por cento do território onde não se rega, que está a perder gente, que está a desertificar-se e onde a pecuária a viver na pastagem e bem gerida pode ser um instrumento de reversão e combate nesta emergência climática”.

 

A rematar, João Madeira refere-se a algumas falsidades comuns sobre esta temática, que importa desmontar: “Uma delas é a do enorme consumo de água que um quilo de carne de vaca pressupõe. Ora, a vaca não destrói a água, principalmente em pastagem: utiliza-a e depois a água regressa ao seu ciclo. Outra falácia tem a ver com o uso do solo. A superfície por onde andam as vacas e ovelhas não é apta a produzir trigo ou milho, nem couves. Não: aquilo só dá pastagem. As vacas pastoreiam em solos pobres, em superfícies que não dariam alimentação directa para o Homem. Não podemos comparar os hectares onde as vacas comem, com os hectares dos perímetros de rega de Alqueva. São coisas diferentes. Não podemos comparar alhos com bugalhos”.

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