Diário do Alentejo

"Mercado dos Amores" pela música de Pedro Mestre

06 de julho 2019 - 13:10

Era nas feiras e mercados que se passeavam amores e se aprendiam modas, muitas vezes cantadas de improviso na roda do despique, onde o som da viola campaniça convidava ao pé de dança. No seu novo disco, Pedro Mestre recria essa ambiência tradicional, transformada em ponto de encontro para poetas, trovadores, repentistas e homens do campo. Gente que ia à feira comprar e vender. E que, por lá, se rendia a novos amores.

 

Texto Luís Godinho

Foto André Roque

 

Se o grande palco do cante alentejano sempre foi a taberna, local onde os homens se juntam no final do dia de trabalho para alguns momentos de convívio, entre um copo, um petisco e uma moda, ele também se fazia ouvir nos mercados e feiras, pontos de encontro entre as gentes da terra e os que vinham de fora trazendo consigo outras realidades e outras formas de cantar. Era gente que chegava a Castro Verde e por lá ficava duas semanas, tempo de amores e de namoros, de danças, de décimas e de cantigas ao despique, realidade que Pedro Mestre se apostou em recriar no seu novo disco, “Mercado dos Amores”.

 

“Chama-se assim não por refletir uma realidade onde se compram ou vendem amores, mas porque era nesses mercados e feiras tradicionais, à época grandes palcos de cultura, que surgiam muitos amores, entre atividades de lazer e convívio. Eram o acontecimento do ano”, diz o músico em entrevista ao “Diário do Alentejo”, sublinhando que o disco integra uma série de cantigas que foram por si recolhidas ao longo dos últimos 25 anos, agora apresentadas com novos arranjos musicais.

“Retrato também um pouco dos meus amores, das coisas que gosto de fazer. Apresento modas novas, cantigas que estavam completamente no esquecimento e que adaptei, num misto de sonoridades que retrata o Alentejo visto pela minha ótica, desde modas de baile a interpretações solistas. O Alentejo é força, garra e imensidão e isso pode ser apresentado por uma só pessoa, daí ter apostado em várias sonoridades que se juntam com o cante”.

No disco, Pedro Mestre volta a aliar as sonoridades alentejanas com outras estranhas à região, como gaitas de foles, a viola caipira (“parente” longínquo da campaniça) ou o didjeridu, instrumento de sopro dos aborígenes australianos que acompanha o canto a vozes de “Mercado dos Amores”, o tema que dá nome ao disco, uma moda triste de alguém que percebe estar sozinho: “Fui vender o meu coração/ Não achando compradores/ Tive de o por em leilão”.

 

Desse trabalho de recolha do cancioneiro tradicional surgem temas “com uma riqueza poética muito forte” e que estão em “desuso”, praticamente esquecidas, como uma moda muito cantadas nos anos 30 do século passado que hoje até estará mais atual: “Agora já não se usa/ Ir pedir a filha ao pai/ Sai-se pela porta fora/ E sua filha já cá vai”.

“Nessa feiras havia homens a vender décimas, conjuntos de quadro versos feitos a partir de um mote, tradição praticamente perdida no Baixo Alentejo mas que ainda existe no Alto Alentejo, por exemplo, no Alandroal. Pedi a um poeta popular que fizesse as décimas e voltei a cantá-las”. Na “Roda de Despique”, outro tema do álbum, Pedro Mestre coloca-se no papel do cantador e tocador de campaniça que andava de terra em terra a animar feiras e mercados: “Nesta Roda do Despique/ Cantam-se amores falados/ Eu canto de viola ao peito/ Trinando pontos pisados”.

 

“Mantenho que a campaniça pode ser tocada por muitas pessoas, isto é, qualquer músico afina-a à sua maneira e toca. No entanto, para retirar dela os trinados puros da tradição é preciso mergulhar na fonte e vivê-la na sua origem”, sublinha o músico, considerando que o trinado da campaniça “é a sua riqueza maior”.

 

As rodas do despique, nas quais se cantava de improviso, ao desafio, tiveram um papel fundamental na preservação da campaniça. Era o tempo em que às feiras de Castro, ou de Cuba, ia gente como o Matias Cego ou a Zefinha de Portel que, a troco de uma moeda, cantavam de improviso as novidades da terra. “Tenho depoimentos e entrevistas de pessoas que viveram esse período”, conta Pedro Mestre, apostado em dar projeção a estas manifestações do cancioneiro tradicional: “É de todo importante juntar o cante e a música alentejana a outras realidades musicais, mas o cante não pode deixar de aparecer como ele é”.

 

Num trabalho onde se fala muito de amores – “Carolina”, por exemplo, um poema de Rosa Guerreiro Dias presta homenagem à filha do músico, mas também ao seu avô, homem ligado às tabernas e ao cante e que era conhecido pelo “Carolina” – não faltam sonoridades mais alegres, ritmos que embalavam os bailes pela noite dentro – “Silva, silva, enleio, enleio”, uma dança que chegou a ter coreografia para os bailes de mastros, é aqui interpretada por Pedro Mestre e Celina de Piedade. “Havia o cante às vozes mas também se dançava e também havia festa. Quando tinham vagar, as pessoas conviviam com mais proximidade do que hoje e tento mostrar esse Alentejo que já não existe”.

 

Além de Celina da Piedade, “Mercado de Amores” conta com a participação de vários músicos convidados, como Ricardo Ribeiro, Lúcia Moniz, Pedro Calado, o Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento, o Grupo Coral da Casa do Povo de Reguengos de Monsaraz, David Pereira e José Diogo Bento, entre outros.

 

“Tento apresentar um trabalho que possa chegar mais além naquilo que é a inovação da música tradicional, para cativar outros públicos, mas que leve nele a tradição pura da nossa maneira de ser. Tenho orgulho de ter o conhecimento de toda esta riqueza, de toda esta diversidade, que é o cante no Alentejo”. Um cante de vozes, classificado pela Unesco como Património Imaterial da Humanidade, mas também feito de “outras roupagens”, nas quais cabem as sonoridades tradicionais da serra de Almodôvar, mas também as do litoral de Odemira ou de serra de São Mamede.

 

Herdeiro de “Campaniça do Despique”, que valeu ao músico de aldeia de Sete, Castro Verde, o prémio Carlos Paredes e cuja digressão incluiu quase uma centena de concertos em diversos palcos, entre os quais o Centro Cultural de Belém, “Mercado dos Amores” apresenta-se como “expressão sentimental do bem-querer dos amantes”, um romantismo bucólico no qual se “enleiam registos de expressões amorosas que o tempo levou, mas que é bom ficarem nas memórias”.

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