A Rota do Vinho de Talha, uma iniciativa do município de Vidigueira, que envolve 22 concelhos de todo o Alentejo, foi, recentemente, apresentada à imprensa. Tratou-se de uma viagem pelos dois mil anos da história de uma prática tradicional que pretende integrar o Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial e, no futuro, ser reconhecida internacionalmente pela Unesco.
Texto Aníbal Fernandes
A produção do vinho de talha é uma realidade em dezenas de concelhos do Alentejo, mas ninguém questiona que a capital é em Vidigueira, mais concretamente na freguesia de Vila de Frades. Rui Raposo, presidente da autarquia, diz ao “Diário do Alentejo” que o seu concelho é “a comunidade de referência, mas este projecto pretende promover a totalidade dos municípios aderentes” que são Aljustrel, Almodôvar, Alvito, Arronches, Borba, Beja, Campo Maior, Cuba, Elvas, Estremoz, Évora, Ferreira do Alentejo, Marvão, Mora, Moura, Mourão, Redondo, Reguengos de Monsaraz, Santiago do Cacém, Serpa e Viana do Alentejo.
Nos dias 18 e 19 a autarquia da Vidigueira promoveu uma apresentação à imprensa do projecto que nas palavras do autarca “correu muito bem”. Foi a oportunidade de dar a conhecer de perto “as arquiteturas, saberes e processos culturais deste vinho único, fosse através de um passeio entre ruínas romanas ou por vinhas centenárias, fosse numa adega acompanhados de talhas de barro de variados tamanhos e feitios e sempre com os produtores de vinho de talha como companhia”.
O projeto da Rota do Vinho de Talha, como já se disse, efetuou o registo deste processo de produção no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, no portal da Direção-Geral do Património Cultural, no passado dia 23 de setembro de 2022, o que é “um primeiro passo para o reconhecimento internacional por parte da Unesco”, confirma Rui Raposo.
A iniciativa da Vidigueira pretende divulgar do ponto de vista turístico todo o território abrangido com base na produção do vinho de talha, mas à boleia promover a gastronomia, os produtos regionais, o artesanato, a história e a cultura de cada concelho.
Produz-se Vinho de Talha em toda a região, no entanto, na freguesia de Vila de Frades estão concentradas um número significativo de adegas, a Villa Romana de São Cucufate e o Centro Interpretativo de Vinho de Talha.
No Alentejo existe uma tradição ininterrupta de mais de 2000 anos de produção de Vinho de Talha, um património que se manteve ao longo de gerações até aos nossos dias. A presença dos romanos foi responsável pela introdução das técnicas de produção vitivinícola no território português, que começaram no Alentejo e no Algarve.
O processo básico de vinificação mantém-se inalterável há séculos, mas há variantes locais que permitem afirmar que os vinhos de talha são todos diferentes entre si.
Tradicionalmente este tipo de vinho é consumido entre o São Martinho e o Carnaval e é maioritariamente branco. No entanto também o há tinto e petroleiro. São vinhos de características ímpares e a população local diz que “enquanto houver vinho de talha, ninguém bebe do outro”.
AS TALHAS
A “invenção” do vinho de talha só foi possível com o aparecimento da olaria e a respetiva produção de recipientes cerâmicos onde as uvas poderiam ser primeiro armazenadas e, depois, esmagadas. De um modo geral, as talhas eram besuntadas no seu interior com uma mistura de pez louro, cera de abelha e, por vezes, um pouco de azeite, o que evitava que o vinho se entranhasse no barro e azedasse. A fermentação do mosto inicia-se espontaneamente dentro das talhas após um ou dois dias, quando se dá a subida da balsa até ao seu bordo.
A fermentação termina, em regra, oito a 15 dias após a entrada das uvas na talha, demorando mais algumas semanas para que a parte sólida dos cachos, que no início do processo estão à superfície, se deposite no fundo da talha e as grainhas das uvas subam à superfície. Terminado o processo, a talha é tapada com um pano limpo ou com recurso a um tampo de madeira, ficando o vinho em descanso até ao início de novembro, o que está quase a chegar.
ALGUNS LOCAIS A VISITAR
Adega Gerações da Talha
Data do século XVIII e foi adquirida por Francisco Nogueira Anacleto, que passou a arte de fazer vinho de talha às gerações seguintes. Teresa Caeiro, a atual proprietária, fundou a empresa Gerações da Talha, com a sua mãe. A adega possui cerca de meia centena de talhas. A empresa organiza vários programas temáticos, como, por exemplo, o passeio pelas vinhas, o piquenique ao pôr do sol e a visita à adega com provas de vinho e petiscos. Aos sábados, nos meses de novembro e dezembro, a Gerações da Talha organiza a Rota das Adegas, um programa que inclui visitas a quatro adegas tradicionais de Vila de Frades, prova de vinhos de talha e petiscos tradicionais, acompanhados por um grupo de Cante Alentejano.
Ruínas da Villa Romana de S. Cucufate
As ruínas da Villa Romana de São Cucufate, em Vila de Frades, são um monumento nacional e o local certo para testemunhar a atividade vitivinícola aí desenvolvida há dois milénios: desde o plantio das vinhas e a produção de vinho de talha, à descoberta de materiais usados no processo de fabrico de vinho, de talhas (dolia) e de grainhas de uva encontradas debaixo de grandes prensas para esmagar as uvas na adega. É ainda possível ver vestígios do período romano de uma mansão, termas, um templo e uma zona de produção agrícola.
Adega Tradicional da Família Galante
José Galante, nascido em Vila de Frades, construiu uma adega na entrada da vila, conhecida por Adega do Zé Galante, onde produz a maior parte do vinho, seguindo os ensinamentos do seu avô, e onde recebe grandes grupos no Pátio das Talhas. O famoso cozido de grão, ou outros pratos típicos alentejanos, são sempre acompanhados pelo vinho, branco, tinto ou petroleiro, que é vendido em garrafões, habitualmente até ao final do mês de fevereiro.
Adega-Museu Cella Vinaria Antiqua e Honrado Vineyard
A Cella Vinaria Antiqua, em Vila de Frades, é uma adega histórica, do século XVIII/XIX, que se encontrava escondida por trás das paredes e por baixo do chão de uma casa situada ao lado do restaurante País das Uvas. Os seus proprietários são António e Ruben Honrado, pai e filho, donos do restaurante e da empresa que gere estes dois espaços. A adega encontra-se alguns metros abaixo do solo, para manter o vinho à temperatura adequada. Tem arcos altos e janelas grandes, por onde as uvas ainda são descarregadas. No centro, no chão, está enterrada uma talha, que é conhecida como ladrão. A recuperação deste local transformou-o num espaço-museu dedicado às tradições e técnicas de produção do vinho de talha. Hoje oferecem Vinho de Talha DOC engarrafado com marca própria. O local é palco de provas de vinhos e petiscos, seminários e jantares temáticos.
Casa das Talhas da Adega Cooperativa de Vidigueira, Cuba e Alvito
Situada em Vidigueira, foi fundada em 1960 e deu início à sua atividade três anos depois. Entre os efetivos da Adega de Vidigueira, contam-se as melhores castas autóctones, com destaque para a Antão Vaz, também conhecida como “casta da Vidigueira”. O local é um espaço expositivo que conta a história dos vinhos numa viagem pela região, pela sua cultura e pela história. A adega dispõe também de um espaço polivalente, chamado Casa das Talhas e promove vários programas de enoturismo com provas de vinhos, onde se destaca o vinho de talha DOC Alentejo e a visita a vinhas centenárias, raras pela sua idade, pelas suas castas e pelas suas características, que produzem uvas das castas brancas mais tradicionais do Alentejo: Antão Vaz, Roupeiro, Manteúdo, Diagalves, Larião e Perrum, algumas delas perto da extinção.