Diário do Alentejo

O pai, o filho e o Espírito Santo

19 de agosto 2022 - 16:00
Os Vocalistas brilharam, recentemente, no The Voice Gerações e protagonizaram o documentário “Bissexto”, um exemplo de “resistência em tempo de pandemia
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O ano de 2020 foi, para muitos, um ano quase inexistente. Excluindo os trabalhadores da “linha da frente”, médicos, enfermeiros e restante pessoal hospitalar à cabeça; bombeiros e trabalhadores da recolha do lixo; funcionários de lares, escolas, serviços públicos e empresas recolheram a casa e ao teletrabalho. Aos artistas – atores, músicos, cantores, técnicos de som e de palco – restou-lhes o silêncio, ou, quanto muito, aparições gratuitas através das plataformas digitais.

 

Os concertos foram cancelados e as receitas desapareceram de um dia para o outro. Houve quem se resignasse, mas houve também quem aproveitasse o interregno para se reinventar. É o caso de Os Vocalistas que lançaram braços a uma tarefa hercúlea: publicar, durante 366 dias, uma moda do cancioneiro popular baixo alentejano na Internet.

 

Na semana em que o grupo participou na fase final do The Voice Gerações, foi lançado o documentário onde, segundo Luís Godinho, realizador do vídeo, se regista “a afirmação de resistência perante a pandemia e o silêncio” dos três elementos que constituem o grupo. Chama-se “Bissexto” e está aí num computador perto de si.

 

Texto Aníbal Fernandes

 

A circulação entre concelhos chegou a estar condicionada devido à epidemia da covid-19, mas isso não impediu que, durante semanas, uma equipa de filmagens acompanhasse Bernardo e José Emídio e Ruben Lameira (Os Vocalistas), pelos campos do Baixo Alentejo, numa recolha de modas tradicionais para a elaboração de um cancioneiro digital: “Bissexto de Modas”.

 

Esse trabalho – que ainda hoje pode ser consultado na página de Youtube do grupo – foi sendo divulgado dia a dia, desde o primeiro de janeiro (Aldeia Nova), ao último do ano (As Meninas da Ribeira do Sado). Agora, também podemos ver o trabalho preparatório para a concretização do projeto e que os levou da Vidigueira a Pias, da Cuba à aldeia do Rosário ou a Castro Verde”.

 

José Emídio conta ao “Diário do Alentejo” como surgiu a ideia: “Lancei o desafio ao Luís Godinho e ele aceitou. Juntamente com o Bruno Vassalo cozinharam a ideia e fomos para a estrada. O Luís já tinha experiência neste tipo de coisas e fez uma leitura perfeita da situação”.

 

De facto, este é o terceiro documentário que o realizador concretiza sobre temáticas musicais. Depois de “Chainho”, por ocasião do cinquentenário da carreira do guitarrista natural de Santiago do Cacém, seguiu-se “Marfim”, uma mostra que tem como base o património arquitetónico e cultural de Évora, cujo anfitrião foi o músico António Bexiga, ambos estreados em 2017.

 

O novo documentário retrata um tempo em que Os Vocalistas viram a sua atividade “reduzida a zero” e decidiram responder “à falta de trabalho pago com um projeto de recolha de músicas do cancioneiro tradicional da região”. “É um trabalho que documenta uma afirmação de resistência perante a pandemia e o silêncio”, explica Luís Godinho, acrescentando que o vídeo mostra “a obstinação destes três músicos, que se recusaram a cruzar os braços no momento mais difícil das suas carreiras” e decidiram “fintar a crise” que se abateu sobre o setor da cultura e “fazerem o que melhor sabem: cantar”.

 

O realizador confessa que “foi com espanto e admiração” que a equipa de filmagens acompanhou Os Vocalistas “na renúncia ao silêncio que invadiu as suas e as nossas vidas para, no tempo de paragem em que o documentário foi gravado, procurarem novas fontes de inspiração, indo ao encontro de velhos amigos com quem partilham essa imensa aventura que é o Cante Alentejano” e explica que o documentário é, ainda, uma reflexão “sobre as consequências financeiras, pessoais e familiares da crise provocada pela covid-19 e sobre a difícil tentativa de regresso” à vida normal.

 

José Emídio diz que “o documentário fala das dificuldades que a pandemia trouxe para o nosso trabalho. Foi um tempo terrível em que todos os dias eram cancelados espetáculos e em que nos vimos numa situação muito difícil, com todo o nosso trabalho desmarcado”. E a situação ainda não se alterou completamente: “O Alentejo está na moda, mas ainda não é o suficiente”, lamenta o músico, explicando que os espetáculos ainda “são escassos. Muita parra e pouca uva, como se costuma dizer”, conclui.

 

O vídeo foi produzido pela ALD Produções e pela Setespinhas, com produção executiva de Ana Luísa Delgado e direção de fotografia de Bruno Lino Vassalo. “Bissexto” contou com a participação do Grupo Coral e Etnográfico “Os Camponeses de Pias”, do Grupo Coral Feminino “As Andorinhas do Rosário” e do Grupo Coral “Os Ganhões”, de Castro Verde. O documentário pode ser visionado em https://vimeo.com/706091189.

 

THE VOICE GERAÇÕES

Há duas semanas, na RTP1, em horário nobre, Os Vocalistas não ganharam – ficaram em segundo –, mas impressionaram os jurados, mostraram o que valem e do que são capazes. Esta foi a segunda participação num concurso televisivo, depois de, em 2017, terem conseguido a mesma posição no programa A Cappella – aí com o reforço de Luís Trigacheiro e Luís Filipe Reis.

 

Nessa altura a motivação para participarem no programa era apenas o facto “de nunca ter havido um programa daqueles”, mas teve consequências positivas. Como José Emídio explicou, em 2020, ao “Diário do Alentejo”, aquele programa obrigou-os “a trabalhar as vozes e fazer harmonias e arranjos fora da nossa zona de conforto, o que nos mostrou que se trabalharmos obtemos resultados. Para além disso, deu-nos outra visibilidade e novos contratos. Isto é a nossa profissão. A partir de determinada altura, não posso negar, pensei assim: bora lá, isto vai-nos ajudar”.

 

Desta vez o líder do grupo confessa que a participação visou “sacar mediatismo para conseguir espetáculos. Precisamos de trabalhar”, justifica o músico, considerando que o balanço é “muito positivo”. A expectativa é a a sua presença no programa da RTP1 possa facilitar a adesão das câmaras municipais da região à exibição do documentário e possa proporcionar mais espetáculos ao vivo.

 

Na meia-final, o grupo, que cantou a moda “É Tão Grande o Alentejo”, “virou” as quatro cadeiras dos jurados: Micael Carreira, Anselmo Ralph, Bárbara Bandeira e Simone de Oliveira, tendo escolhido a última para mentora.

 

Na final, Os Vocalistas interpretaram “Se Fores ao Alentejo” e, na finalíssima, “Ai Senhor que Me Queres”, tendo perdido a votação do público para o duo Rodrigo e Teresa, mas tendo ganho a admiração total da audiência e do júri.

 

Micael Carreira – que tinha sido preterido a favor de Simone –, desafiou mesmo, em direto, os três músicos do Baixo Alentejo a trabalharem com a sua produtora: “Vamos conversar”, diz José Emídio, considerando que há hipóteses de virem a trabalhar uma vez que “existe uma máquina montada” que pode ajudar à divulgação do seu trabalho.

 

Esta edição foi dedicada a grupos familiares e de amigos de várias gerações. Os Vocalistas tinham ambas as coisas: José é pai de Bernardo e Ruben é amigo dos dois. Durante a explicação da sua situação relacional, o humor demonstrado pelos três criou alguma baralhação na cabeça dos jurados que não perceberam, à primeira, o relacionamento dos três. Ruben Lameira resumiu de forma hilariante: “Somos o Pai, o Filho e o Espírito Santo”.

 

BEJA NO THE VOICE

O formato do The Voice, apresentado em várias versões desde 2011 pela RTP1, parece talhado para que músicos e cantores do Baixo Alentejo brilhem. Em janeiro de 2021, Luís Trigacheiro – que inicialmente teve por mentor outro baixo alentejano, António Zambujo – sagrou-se vencedor da oitava edição deste formato na equipa de Marisa Liz. Hoje, Trigacheiro é um nome firmado e consagrado no meio musical português, esgotando concertos um pouco por todo o país. Mais recentemente, em julho deste ano, Martim Helena foi finalista da última edição do The Voice Kids. Neto do também cantor já desaparecido, António Helena, e irmão da fadista Daniela Helena, Martim, que é de Beja, gosta do cante e admira António Zambujo que, pelos vistos, já tem sucessores.

 

 

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