Diário do Alentejo

"A resistência é uma caraterística do ser vivo"

16 de março 2022 - 16:20

Manuela Barros Ferreira tem 83 anos e é natural de Braga.

Foi enquanto frequentava a Escola Superior de Belas Artes do Porto que conheceu Cláudio Torres, acabando mais tarde por ser presa, com ele, pela PIDE. Para evitar a guerra colonial ambos fugiram, em 1961, para Marrocos num pequeno barco e daí foram para a Roménia, onde trabalharam como jornalistas na Rádio Nacional de Bucareste e estudaram Letras.

Ao fim de 11 anos ao voltar a Portugal foi novamente presa e só após o 25 de abril se reencontrou com Cláudio. Trabalhou durante 30 anos em investigação dialetal. Atualmente, depois de aposentada passou a habitar em Mértola, onde Cláudio é arqueólogo.

 

Texto José Serrano

Manuela Barros Ferreira apresentou recentemente o seu mais recente livro intitulado “Relatório Circunstanciado de uma Vida a Dois”, obra que contempla as memórias da vida da autora, partilhadas com o arqueólogo Cláudio Torres.

 

Como nos apresenta este seu livro?

A história da nossa prisão e da posterior fuga através do mar já foi contada pelo Cláudio em muitas entrevistas. Desta vez é narrada a minha visão desses episódios e de muitos outros que se lhe seguiram. Descobri que havia uma imaginação retrospetiva, que transformava a sucessão de factos num caminho sinuoso, sempre prestes a entrar em desvios extravagantes. Valeram-me as cartas escritas, com datas como implacáveis marcos de referência. Porque o passado é um pequeno monstro sempre desejoso de reinvenções fosforescentes.

Quanto diria que lhes estão ainda próximas, no seu quotidiano, as memórias narradas nesta obra?

 

Tudo depende do dia em que estamos. Na última semana, por exemplo, veio-me muitas vezes à ideia o ano de 1968, quando a Checoslováquia foi invadida pelas tropas dos países do Tratado de Varsóvia, encabeçadas pelo exército da URSS. O meu sogro morava então em Praga, enquanto nós vivíamos na Roménia. A luta dos checos, que era a favor de um aperfeiçoamento da prática do socialismo, foi cortada pela raiz, tendo sido considerada por esses países como uma traição aos ideais comunistas. Hoje, em que todos eles enveredaram pela via capitalista e não possuem qualquer plano “salvador do amanhã”, torna-se ainda mais flagrante a loucura criminosa da invasão da Ucrânia.

 

De que forma as dificuldades que relata, nomeadamente a perseguição política que sofreu, contribuíram para a construção da sua personalidade?

A resistência é uma característica do ser vivo, que no ser humano tem a vantagem de fazer parte integrante da consciência. Sempre fui avessa a proibições e a imposições de vontades alheias. No entanto, só tomei consciência da necessidade de uma luta de caráter político a partir de 1959, quando conheci o Cláudio. É nesse momento que o livro começa. A minha personalidade – que não sei descrever – foi-se desenvolvendo à custa desses choques políticos, de empurrões daqui e dali, de recusas e aceitações, do estudo e de reflexão. E graças a muitos amigos e companheiros. O quadro que aparece na capa do livro resume a minha atitude perante a vida.

 

O que mais gostaria que estas memórias levassem, a quem as ler?

Um testemunho sobre um sistema social em que o simples ato de falar, de manifestar opiniões, era um atrevimento que se pagava caro. Um testemunho de que não devemos combater por causas erradas: nunca temos que obedecer a quem nos exige que façamos coisas que vão contra a nossa humanidade. E um testemunho de que só vale a pena viver enquanto temos algo para dar. Nem que sejam palavras apenas.

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