Diário do Alentejo

ENTREVISTA. Alberto Matos: “Afinal, onde pára a bazuca?”

19 de agosto 2021 - 11:00

O coordenador do Bloco de Esquerda considera que o distrito apresenta um crescente atraso estrutural, patente na forma intensiva de produção agrícola, “no trabalho escravo de imigrantes”, na incapacidade de fixar população ou de criar “emprego de qualidade”. Elencando as carências nas acessibilidades rodo e ferroviárias e a desvalorização do aeroporto de Beja, classifica a “preocupação” do poder central, face ao território, perto do zero. O responsável político fala ainda de “tiques de autoritarismo, presidencialismo e compadrio” existentes no exercício dos mandatos autárquicos do distrito e diz ser imprescindível olhar para questões como “habitação, ambiente e qualidade de vida, emprego e combate à pobreza endémica”.

 

Texto José Serrano

 

Que retrato, atual, faz do distrito de Beja?

 

O nosso atraso estrutural radica no sistema de propriedade da terra e agravou-se: ao latifúndio de sequeiro sucedeu o mega latifúndio de regadio, mais predador dos pontos de vista ambiental e social. Seis grandes grupos, quatro de origem espanhola, dominam a agricultura alentejana e modificaram radicalmente a paisagem com as monoculturas de olival e amendoal, intensivas e superintensivas. No perímetro de rega do Mira, o grupo Driscoll’s, de origem californiana, impõe as suas patentes aos produtores de frutos vermelhos e domina os circuitos internacionais de comercialização, ficando com a parte de leão dos lucros produzidos nesta terra que serve apenas de “barriga de aluguer”, ou nem isso, já que estas culturas consomem sobretudo água. Água cuja escassez e qualidade são hoje um problema muito sério, fruto do crescimento irresponsável da área de estufas e da gestão privada da Associação de Beneficiários do Mira, que corta a água a pequenos agricultores e põe em causa o abastecimento público. As confederações patronais e o Governo destacam o peso da agricultura intensiva nas exportações, mas escondem que só uma parte ínfima dos lucros é reinvestida no território, não fixando população nem criando emprego de qualidade. Pior ainda: esconderam que as altas taxas de lucro assentam em trabalho escravo sazonal de imigrantes subcontratados a intermediários e engajadores mafiosos.

 

Mesmo nestes tempos de pandemia?

 

A pandemia pôs a nu esta vergonha social que não se restringe a Odemira – tem décadas a frase “sem imigrantes ilegais não há colheitas na Califórnia”, cujo modelo importámos… A fixação de mão de obra qualificada e a criação de emprego estável é inversamente proporcional à proliferação da precariedade, do desemprego, das desigualdades e da pobreza, que atinge mesmo os trabalhadores no ativo. Os serviços públicos, essenciais na promoção dos direitos sociais e da cidadania, estão aquém das necessidades da população, pese embora o esforço e o mérito dos profissionais – com destaque para a saúde, no combate à pandemia. As carências são transversais a áreas como a educação, transportes, acessibilidades, habitação.

 

Como classifica, de forma global, a mudança operada no distrito de Beja, nos últimos quatro anos, consequente do exercício dos mandatos autárquicos, iniciados em 2017?

 

A vitória do PS em 10 dos 14 municípios do distrito, fruto do desgaste das velhas maiorias da CDU, desiludiu quem alimentou esperanças de uma mudança positiva. Os tiques de autoritarismo, presidencialismo e compadrio, quando muito, mudaram de cor, ou até se agravaram. Oito municípios do PS tentaram entregar a distribuição da água em baixa (até à torneira) ao grupo Águas de Portugal, que está na agenda das privatizações desde os governos Sócrates, ainda antes da “troika”. Felizmente esta aventura foi travada nas Assembleias Municipais de Castro Verde e de Beja – nesta última o voto da deputada do BE foi decisivo. Hoje, é patente a necessidade de construir oposições de esquerda – plurais, sólidas e coerentes – às maiorias PS. Tal objetivo não pode confundir-se com um “regresso ao passado”, que teve o seu tempo e não volta mais.

 

Qual a sua opinião sobre os dados preliminares do Censos 2021, que indicam um acentuar do despovoamento no Baixo Alentejo?

 

Estes dados são o reflexo de um modelo de desenvolvimento assente na precariedade e nos baixos salários, na falta de oportunidades e de condições de vida que continuam a empurrar muitos alentejanos, sobretudo jovens, para a emigração. Em Odemira, o único concelho cuja evolução demográfica contraria as tendências nacional e regional, o acréscimo de 13 por cento de residentes é conseguido à custa da imigração, mas as péssimas condições de habitação e a intensa exploração laboral não garantem um crescimento demográfico sustentável.

 

Que medidas são necessárias tomar, no seu entender, para que nos próximos Censos, em 2031, os números demográficos, no distrito de Beja, sejam mais animadores?

 

Só a alteração radical do modelo de desenvolvimento económico e social pode criar condições favoráveis à inversão desta tendência demográfica depressiva, que dura há muitas décadas, pelo menos desde o final dos anos 50, do século XX. Na próxima década vamos assistir ao esgotamento da agricultura insustentável, pelos piores motivos: secas prolongadas, precipitação intensa em períodos curtos, outros efeitos das alterações climáticas, esgotamento e erosão acelerada dos solos, contaminação das linhas de água… A mudança de paradigma para a agricultura familiar, mais diversificada e ecológica, de proximidade e menos dependente dos mercados internacionais, vai impor-se como uma necessidade.

 

Considera que as várias forças partidárias do distrito deveriam assumir, ainda que divergentes nas suas visões políticas, uma estratégia concertada, de valorização e desenvolvimento do território, ou encara esse entendimento inviável?

 

À esquerda são possíveis e desejáveis entendimentos. Com as direitas não. E o PS vai ter que optar entre a cedência à direita e ao agronegócio e os interesses das populações.

 

De que forma classifica a “preocupação” com que o poder central, através dos seus vários Governos, tem olhado para o distrito de Beja?

 

A “preocupação” tende para zero: nem comboios rápidos com ligação ao Algarve e a Lisboa, em linha eletrificada; nem valorização do aeroporto civil de Beja; nem ligações rodoviárias decentes, dentro e para fora do distrito e no acesso a Espanha; nem melhores serviços públicos, nem habitação. Afinal, onde pára a bazuca?

 

Quais as principais questões que deverão merecer a atenção dos presidentes de câmara, que serão eleitos a 26 de setembro, em prol dos seus concelhos e do distrito de Beja?

 

Habitação, ambiente e qualidade de vida, emprego e combate à pobreza endémica – numa perspetiva emancipadora, sem “caridadezinha” nem criação de novas dependências.

 

MAIS VOTOS E MAIS ELEITOS

 

O que considera ser, para o seu partido, um bom resultado eleitoral autárquico, no distrito de Beja?

 

O Bloco almeja aumentar a votação e o número de eleitos – hoje temos apenas deputados municipais em Beja e Odemira. Estamos a percorrer esse caminho: em 2021 apresentamos listas em seis concelhos, contra quatro em 2013 e em 2017.

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