Diário do Alentejo

Baixo Alentejo: Maioria das escolas sem ‘net’ de qualidade

30 de junho 2021 - 10:50

Texto Nélia Pedrosa

 

Setenta e três por cento dos 11 agrupamentos de escolas do Baixo Alentejo que participaram num estudo do Conselho Nacional de Educação (CNE) não dispunham de uma rede de ‘Internet’ de qualidade em nenhum dos seus estabelecimentos, quando o Governo suspendeu, pela primeira vez, o ensino presencial, em março de 2020, no âmbito das medidas de combate à covid-19. Um valor muito acima da média nacional (35,5 por cento) e o mais elevado do continente e regiões autónomas.

 

O estudo, que contou com a participação de 11 dos 18 agrupamentos do distrito de Beja (excetuando o concelho de Odemira, que integra a NUT III Alentejo Litoral), avança que 18,2 por cento dispunham de uma rede de ‘Internet’ de qualidade em alguns dos estabelecimentos e 9,1 por centro em todos.

 

No Alentejo Litoral (que, para além de Odemira, inclui quatro concelhos alentejanos do distrito de Setúbal), 14,3 por cento dos oito agrupamentos participantes (de um total de 15) não dispunham de uma rede de qualidade em nenhum dos seus estabelecimentos e 85,7 por cento em alguns. Nenhum agrupamento do Alentejo Litoral dispunha de uma rede de qualidade em todas as suas escolas.

 

No contexto nacional, 19 por cento dos diretores referiram dispor de uma rede de ‘Internet’ de qualidade na totalidade dos estabelecimentos.

 

O estudo “Educação em Tempo de Pandemia: problemas, respostas e desafios das escolas” pretendeu identificar “as principais dificuldades sentidas, as respostas dadas e os desafios enfrentados pelas escolas portuguesas” durante a primeira fase de confinamento.

 

Através de um inquérito, aplicado em julho de 2020 a diretores e a professores com funções de coordenação, o CNE pretendeu, também, “recolher informação que permitisse antever se a experiência vivida poderia ser impulsionadora de mudanças que transformassem a escola no futuro”. A presidente do CNE, Maria Emília Santos, considera que a apresentação do estudo em 2021, “depois de uma segunda vaga bem mais grave do que a primeira e, sobretudo, depois de todas as adaptações e readaptações do sistema educativo”, continua a fazer sentido porque o documento capta um “momento irrepetível”, em que é feito “um verdadeiro teste à resiliência do sistema”.

 

METADE DAS ESCOLAS DO LITORAL “MUITO AFETADA” POR FALTA DE RECURSOS

 

Dos dados sobressai ainda que 50 por cento dos agrupamentos do Alentejo Litoral que compuseram a amostra foram “muito afetados” pela falta de recursos digitais dos alunos e famílias durante o “ensino remoto de emergência”, perto do dobro da média nacional (26,6 por cento). Aliás, o Alentejo Litoral destaca-se como uma das quatro regiões que apresentam as percentagens mais elevadas. Ainda no litoral, 12,5 por cento dos agrupamentos foram “Afetados” e 37,5 por cento “Nada ou pouco”. No Baixo Alentejo, 27,3 por cento foram “Muito afetados”, 54,5 por cento “Afetados” e 18,2 por cento “Nada ou pouco”.

 

Em termos nacionais, mais de 80 por cento das escolas participantes foram “Afetadas” ou “Muito afetadas” pela referida falta de recursos, com mais de um quarto a integrar este último grupo.

 

Segundo o estudo, o Alentejo Litoral foi uma das seis regiões do País “onde a inexistência de dispositivos teve maior impacto”, com mais de 20 por cento dos alunos sem equipamento. No Baixo Alentejo, os valores andam entre os 15 e os 20 por cento.

 

As escolas “Muito afetadas” pela falta de recursos digitais dos alunos e das famílias, refere o CNE, “foram as que integravam mais alunos provenientes de contextos desfavorecidos, as que tinham mais de 10 por cento de alunos com necessidades específicas e 10 por cento ou mais com Português Língua Não Materna – “indiciando a presença de alunos de origem estrangeira que não dominam bem o Português”–, e em que mais de 30 por cento dos alunos não tinham equipamento digital”. Eram também “escolas de menor dimensão, no que respeita ao número de alunos, e as que ministravam todos os níveis e ciclos de educação e ensino”. O Alentejo Litoral surge como a região com a maior percentagem de agrupamentos com 10 por cento ou mais de alunos com Português Língua Não Materna.

 

O Alentejo Litoral destaca-se ainda como registando a maior percentagem de escolas que não tiveram apoio para ceder dispositivos digitais ou acesso à ‘Internet’ a alunos e famílias, 75 por cento, situando-se a média nacional nos 18,3 por cento. Nas restantes escolas dos cinco concelhos do litoral, 12,5 tiveram apoio e outros tantos não precisaram. No Baixo Alentejo, 27, três por cento não tiveram apoio e 72,7 por cento tiveram.

 

Quanto à falta de formação adequada dos professores na utilização dos recursos educativos digitais, perto de 55 por cento dos agrupamentos do Baixo Alentejo inquiridos foram “Afetados ou muito afetados”. Já na falta de formação adequada dos alunos e famílias, 90,9 por cento das escolas foram “Afetadas ou muito afetadas”. No caso do Alentejo Litoral, 37,5 por cento dos agrupamentos foram “Afetados ou muito afetados” pela escassez de formação adequada dos professores e 75 por cento dos alunos e famílias.

 

A falta de formação adequada dos alunos e das famílias na utilização de recursos digitais foi o aspeto, a nível nacional, que mais diretores indicaram ter “Afetado ou afetado muito” o ensino a distância (79 por cento). Uma “percentagem expressiva” de diretores referiu, contudo, ter promovido sessões de formação dirigidas a professores (81 por cento), mas também a alunos e famílias (48 por cento), visando “apoiá-los na utilização de plataformas de comunicação”.

 

Quanto à perceção dos docentes sobre a gravidade do aumento das dificuldades de aprendizagem durante o confinamento, o Baixo Alentejo é a região onde menor número de professores considerou que a situação foi grave (58 por cento). No Alentejo Litoral, 73,1 por cento consideraram que este foi um problema “Grave” ou “Muito grave”. A média nacional situa-se nos 72 por cento.

 

Os diretores afirmaram ainda que, em média, dois por cento dos alunos não participaram em qualquer das atividades escolares durante o período de encerramento das escolas. O Alentejo Litoral surge, com três por cento, no grupo das sete regiões com as percentagens médias mais elevadas a nível nacional. No Baixo Alentejo, entre um e dois por cento dos alunos não participaram em qualquer atividade.

 

DESIGUALDADES ENTRE ALUNOS AGRAVARAM-SE

 

O encerramento dos estabelecimentos de ensino e recurso ao ensino remoto de emergência veio agravar as desigualdades entre os alunos, segundo a perceção de mais de 60 por cento dos inquiridos, que alertaram também para o risco de abandono escolar. Quanto à primeira questão, 85 por cento dos docentes do Alentejo Litoral consideraram que o aumento foi “Grave” ou “Muito grave”. No Baixo Alentejo esse valor foi de cerca de 60 por cento.

 

Relativamente ao aumento do risco de abandono escolar, no Baixo Alentejo e no Alentejo Litoral, à semelhança da quase totalidade do território nacional, a percentagem de professores que consideraram este aspeto como “Grave” ou “Muito grave” é inferior a 55 por cento.

 

Para prevenir o abandono escolar, os agrupamentos tomaram medidas, nomeadamente, manter contactos telefónicos com as famílias, com as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens e outras autoridades, para além de promoverem visitas a casa e fornecerem equipamentos considerados essenciais.

 

A maioria dos diretores e professore inquiridos concordam, ainda, que “O ensino à distância acelerou o apetrechamento tecnológico (69 por cento e 70 por cento, respetivamente), que “O ensino à distância reforçou os contactos com as famílias e com a comunidade (78 por cento e 69 por cento) e que “O ensino a distância reforçou a organização e cooperação internas” (84 por cento e 71 por cento).

 

“O recurso ao ensino a distância requer, obviamente, uma infraestrutura que neste momento é ainda insatisfatória e desigual. A distribuição de dispositivos já iniciada poderá colmatar parte do problema. Mas é urgente o reforço das redes de conectividade, quer a nível territorial, quer sobretudo entre as escolas de um mesmo agrupamento”, refere o CNE.

 

COM O ENSINO À DISTÂNCIA “FICOU EVIDENTE O QUE JÁ SE SABIA”

 

José Bravo Nico, professor associado com agregação na Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora, diz, em declarações ao “Diário do Alentejo”, que os resultados do estudo revelam que o sistema educativo “não estava preparado para uma pandemia que encerrou a generalidade das escolas e colocou em casa a quase totalidade dos estudantes e dos professores”.

 

“Com a alteração repentina de uma atividade educativa presencial para o modelo a distância, ficou evidente o que já se sabia: não existia rede digital em todo o território nem com a qualidade necessária; não existiam equipamentos necessários para garantir uma ligação digital a todos os estudantes e professores; e não existiam competências digitais adequadas para trabalhar de forma remota”, sublinha.

 

Segundo o docente universitário e investigador no Centro de Investigação em Educação e Psicologia, “esta evidência revela, por outro lado, que o investimento que anteriormente havia sido feito no Plano Tecnológico da Educação tinha sentido, apontava na direção correta e foi inadequadamente descontinuado. Se tal não tivesse ocorrido, talvez os resultados deste estudo tivessem sido diversos do que foram”.

 

José Bravo Nico realça ainda que “as consequências e as desigualdades provocadas pela situação de pandemia na educação foram e são o eco claro das desigualdades sociais e económicas que existem na sociedade e no território. Em contextos sociais e territoriais mais excluídos, as dificuldades no acesso e na frequência escolares, em tempos de pandemia, são mais evidentes”.

 

“A NOVA OBRA PÚBLICA”

 

Questionado quando às medidas a tomar face às conclusões do estudo, José Bravo Nico remete para o seu artigo “Edução e formação de adultos na era digital: a nova obra pública”, em coautoria com Lurdes Nico, publicado em 2020 na revista “Dirigir & Formar”. “Apesar de se referir a contextos de educação de adultos, os problemas e as soluções são os mesmos”, diz. Os autores consideram que “a existência (e acessibilidade) de redes digitais é, na atualidade, um desafio tão grande quanto foi, nas décadas de Sessenta e Setenta do século passado, a existência (e acesso) de redes de energia, água potável, saneamento básico e telefone”, sendo “também uma condição indispensável para o acesso às novas plataformas de edução”. Simultaneamente, “é fundamental garantir o acesso a equipamentos tecnológicos”, assim como promover a literacia digital. Para “a consecução desta obra pública”, defendem, “deverão ser convocadas todas as forças do País”, entre Estado, autarquias, instituições da sociedade civil e empresas tecnológicas.

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