Junto a São Teotónio, Odemira, há um miradouro de onde se veem quilómetros de estufas agrícolas para os lados de Vale de Figueira e Carvalhal, e que, segundo vários avisos, podem ficar sem água em poucos anos. Um dos alertas é feito por um popular, referindo-se à barragem de Santa Clara. E não é o primeiro.
A falta de água na barragem é insistentemente referida nas mais diferentes conversas com os mais diferentes protagonistas na região do sudoeste alentejano. E se há quem diga que água não falta há também quem não dê mais uma década para que ela acabe, que não fale das alterações climáticas e dos estudos sobre a desertificação do Alentejo e Algarve.
A barragem de Santa Clara foi construída no rio Mira (nasce na Serra do Caldeirão e desagua em Vila Nova de Milfontes) na década de 1960 para, com os canais feitos depois, irrigar o chamado Perímetro de Rega do Mira, uma zona de agricultura intensiva, incluindo em estufa, que é também uma parte do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (Pnsacv). De acordo com os dados mais recentes do Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos (da Agência Portuguesa do Ambiente), no final de abril a barragem de Santa Clara estava a 50 por cento, quando o valor devia estar nos quase 80 por cento. É esta a média desde 1990.
Em termos precisos, na bacia do Mira, no final de abril, a albufeira de Corte Brique estava a 63,1 por cento e a de Santa Clara a 50,5 por cento. “É um problema grave, porque a barragem está a 50 por cento e [ainda não] estamos no início do verão”, diz Luísa Rebelo, que trabalha na área do turismo, acrescentando: “Se a água acabar as empresas [agrícolas] vão embora, mas nós ficamos”.
Nuno Carvalho, engenheiro do Ambiente, admite que o tipo de agricultura que se pratica tem um consumo controlado, mas também acrescenta que a área a irrigar é enorme, diz que a barragem está “abaixo do nível morto” e que o perímetro de rega (que funciona por gravidade) está ultrapassado, que tem centenas de canais a céu aberto, com grande evaporação, e que a água não consumida vai parar ao mar.
Mário Encarnação, engenheiro geógrafo a viver ao lado do Pnsacv, diz que a albufeira de Santa Clara está com um decréscimo de sete por cento ao ano e que esteve desde agosto de 2019 a fevereiro de 2021 a bombear água porque atingiu um limite em que a água já não chegava ao canal de rega. E cita estudos segundo os quais choveu menos 11 meses de 2012 a 2020, quando comparado com a média padrão (1971-2000).
Ainda que a distribuição de água pelos canais já só funcione com bombas, Luís Mesquita Dias, presidente da Associação dos Horticultores, Fruticultores e Floricultores dos Concelhos de Odemira e Aljezur (AHSA), relativiza o problema, reconhecendo que ele existe. À Lusa diz que a agricultura que se faz no sudoeste alentejano é sustentável, que a água é uma preocupação no território, e que a AHSA, com a Associação de Beneficiários do Mira, vai desenvolver estudos para regar mais com menos água, ou captar mais água.
“A barragem de Santa Clara tem uma capacidade de 480 milhões de metros cúbicos e nesta altura ainda tem 240 milhões”, assegura, acrescentando que é preciso “atuar nas explorações agrícolas, adaptar o sistema de rega para formas mais precisas, reparar perdas e considerar a hipótese de ir buscar o terço da água que vai parar ao mar”. É uma questão, garante, que tem de se trabalhar, que se corrige construindo reservatórios de água nas várias explorações. Mas fala a seguir de burocracias e diz que “construir um reservatório é uma dor de cabeça”.
Luís Mesquita Dias refere-se implicitamente ao facto de o perímetro de rega do Mira coincidir com o Pnsacv e que este tem restrições à construção.
O primeiro-ministro, António Costa, numa visita a Odemira falou da “excelência da atividade agrícola”, mas há quem não pense assim. Como Paula Canha, bióloga de Vila Nova de Milfontes, segundo a qual as regras no perímetro de rega “nem sempre são cumpridas”, e o plano de ordenamento do Pnsacv diz que fora do perímetro de rega não pode haver agricultura intensiva, mas que há zonas que “claramente são de produção intensiva”. O plano também diz que deve haver uma monitorização dos impactos da atividade agrícola na água, no solo e na biodiversidade mas “ninguém está a fazer isso”.
Professora em Odemira, Paula Canha conta: “Há duas semanas fui com alunos meus fazer análises de águas e havia sítios onde os fosfatos estavam 100 vezes acima do que é permitido por lei”. A bióloga fala também da falta de fiscalização, de “constrangimentos” vários, ainda que Luís Mesquita Dias assegure que tudo é feito na agricultura dentro das regras.
“A maior parte da atividade agrícola é destinada a exportação para grandes cadeias internacionais. Todas fazem visitas e auditorias e obrigam a certificações. Auditam sem avisar, e isso inclui os direitos humanos”, diz o responsável. Ao que a bióloga contrapõe: “As vistorias são com aviso prévio, eles sabem exatamente em que data acontecem e destacam um grupo de técnicos que semanas antes começam a preparar as visitas. E para uma empresa que tem 10 ou 12 campos as vistorias são a um ou dois”.
“ASSUSTADORA ESCASSEZ DE ÁGUA”
O movimento Juntos Pelo Sudoeste criticou o corte de água a pequenos agricultores do concelho de Odemira pela Associação de Beneficiários do Mira (ABM), mas a entidade argumentou que estas ligações “precárias” dispõem de alternativas. Em comunicado, o movimento revela a sua preocupação perante a “assustadora escassez de água” e a gestão que diz estar a ser feita da albufeira de Santa Clara, que serve o Perímetro de Rega do Mira, tendo já solicitado uma reunião à Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e a outras entidades públicas.
“Pedimos esta reunião para tentar perceber quais são os dados que a APA possui relativamente à barragem de Santa Clara”, disse Nuno Carvalho, um dos elementos do movimento apartidário de cidadãos de Odemira e Aljezur, segundo o qual “os dados mostram que os níveis da barragem têm vindo a decrescer” e que, “nos últimos três anos”, foi necessário “instalar bombas” para “alimentar o Perímetro de Rega do Mira”, onde surgem “quase diariamente” novas explorações de agricultura intensiva, porque “a cota da água da barragem estaria abaixo” da capacidade. “Queremos tentar perceber quais são os dados da APA que incentivam e dão abertura para que estas explorações continuem a proliferar e a crescer a um ritmo semanal, com áreas gigantes, quando estamos a cortar água aos mais pequenos, inclusive para consumo privado”.
Numa resposta por escrito, a ABM diz que as afirmações do movimento são “completamente destituídas de fundamento” e realça que a gestão da obra de rega do Mira “obriga ao respeito” pelos direitos dos beneficiários. “Os cortes de fornecimento efetuados atingiram apenas clientes a título precário e apenas na situação de disporem de alternativas de abastecimento de água, designadamente da rede municipal”, estando também “asseguradas todas as situações de abeberamento de animais”.
Nuno Carvalho alega que “há muita gente [na zona] que não tem acesso ao serviço municipal” de abastecimento de água e cujas habitações “são alimentadas” por água da barragem de Santa Clara. “A prioridade, neste momento, é para consumo humano, para os pequenos agricultores que têm pequenas parcelas” de terreno ou “é efetivamente só para as grandes empresas”, questiona.
Para o movimento, o facto de a ABM afirmar que corta a água “apenas a pessoas que têm acesso à rede pública para consumo doméstico” também não é tranquilizador. “Isso significa que essas pessoas, muitas [delas] reformados que compõem magras reformas com hortas de subsistência, pagarão um valor muito mais elevado pela água”, enquanto as empresas têm acesso “a água desproporcionalmente mais barata”, critica o movimento.
A ABM indica que, até ao momento, “foram desligadas 21 captações precárias”, devido à escassez de água na albufeira, a qual, esta terça-feira, encontrava-se à quota 114,35, ou seja 35 centímetros abaixo da cota da tomada de água, o que significa que não existe volume útil disponível. “Nos últimos 25 anos houve uma redução da precipitação da ordem dos 7,6 por cento e, mais importante do que isso, no mesmo período, houve uma redução de afluências à albufeira da ordem dos 33 por cento”, alerta. Na perspetiva da associação, “existem beneficiários e utentes a título precário”, sendo “a dimensão da propriedade irrelevante em termos de direitos”.
Já o diretor da Administração da Região Hidrográfica (ARH) do Alentejo, da APA, André Matoso, revela ter remetido uma resposta ao Juntos Pelo Sudoeste com “um conjunto de explicações e esclarecimentos para uma das preocupações” suscitadas, relacionada com a gestão dos recursos hídricos na barragem de Santa Clara. “A APA emitiu, há alguns anos, uma concessão à Águas Públicas do Alentejo e à Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural, que outorgou à ABM”, explica o responsável, acrescentando que compete ao Ministério da Agricultura “as regras de atribuição de rateio de água”.